(...) Agora queria que me
deixassem em paz. Se calhar já é tarde. Os cartuxos só admitem vocações até aos
40 anos, já tenho o dobro, não sei se tenho capacidades de viver sozinho. Mas
pelo menos queria, com a liberdade pessoal suficiente e sem imposição de tempo,
dedicar-me à oração. Mais do que isso: dedicar-me a descobrir o valor da
palavra, o autêntico significado da palavra, no sentido de linguagem, de
expressão da realidade, no sentido de logos. Encontrar-me na meditação da
palavra como expressão do mundo, da existência, da história, e descobrir-lhe um
sentido.
Li
esta entrevista ontem pela hora de almoço. Durante a paragem da minha jornada de trabalho também li um artigo e vi o trailer de É na
Terra, não é na Lua, o filme premiado de Gonçalo Tocha sobre a Ilha do
Corvo. Há duas semanas, talvez, deparara-me com um artigo sobre o médico da ilha, a
relação de amor-ódio que vive com os corvinos, o que o leva a ficar.
Ontem, ainda, troquei meia dúzia de frases com quem passa tempos profissionais
menos bons, que se refugia num isolamento para, diz-me, focar-se nos seus
problemas e na sua resolução.
Há
temas recorrentes nas minhas meditações, nos diálogos que mantenho comigo
próprio. Serão as minhas obsessões, na expressão de um amigo, sábado ao
jantar? O silêncio é, seguramente, um desses temas. Em momento particularmente
difícil da minha vida quis isolar-me do mundo que eu conhecia, procurar a
solidão das multidões estranhas, como dizia o Eça, refugiar-me alguns dias numa
cartuxa, num deserto não turístico, em qualquer sítio onde me encontrasse
comigo próprio, rezar e encontrar um
sentido para muita coisa. Acabei nos Açores, em S. Miguel, porque entre querer
e fazer há um mundo de inseguranças, temores e opções pretensamente inadiáveis. Mesmo assim o tempo não foi perdido...
A
parte mais saudável de mim é gregária. A parte mais lúcida de mim é gregária. Apesar disso, nas profundezas do que sou há algo que pensa na ilha do Corvo, no silêncio, na
interiorização, na vontade de escrever em frente ao mar, na contemplação das ondas, na vastidão da
paisagem, na parcimónia dos sons, num minimalismo existencial, no
isolamento que favorece a espiritualidade. Demasiados factores me prendem ao inverso de tudo isto: a família, as
relações afectivas, o medo, a (quase) certeza do que sou, a convicção do que é
saudável, os projectos, as pessoas que me são imprescindíveis, o gosto por uma
vida mundana, a dúvida sobre a validade de alguns desejos.
Domingo
almocei em casa de gente que me é próxima, onde adultos e crianças gritavam, faziam barulho, riam, conversavam; ontem jantei com amigos que me sobraram de uma vida profissional
de 20 anos; hoje é dia de estar com quem pertence a outra caixinha onde guardo parte da minha existência.
Gostei de tudo, repetiria tudo, sentiria a falta de tudo. Não obstante, há algo de corvino dentro de mim.
Deixo-vos com uma música bonita, que muitos considerarão triste. É assim... Há sempre o primeiro de maio, sabem?
Deixo-vos com uma música bonita, que muitos considerarão triste. É assim... Há sempre o primeiro de maio, sabem?
JdB
Um tema "com pano para mangas", com uma abordagem que acho que percebo bem.
ResponderEliminarExcelente tb a escolha musical!
Abraço,
fq
Discordo em absoluto da palavras "saudavel" e "lucida" no contexto em que foram usadas.
ResponderEliminarRevi-me por inteiro no terceiro parágrafo. Mas também não sei se o chamar saudável a um apelo forte é a palavra indicada. Belo texto. pcp
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