04 maio 2012

Moleskine


Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

O problema é resolvido, o tempo é cronometrado, o sistema actua para que uma nova chamada entre, numa espécie de nova corrida nova viagem a pontuar no serviço ao cliente.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

Novo problema, nova tentativa de resolução, nova cronometragem do tempo, porque as regras são claras e a pressão é muita. Há o cliente, a satisfaçãozinha cujo indicador é calculado através de fórmulas e raciocínios vedados aos iniciados, o valor da hora, a amortização do equipamento, os indirectos, a energia, o custo do trabalho, os três minutos ideais para a optimização das variáveis.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

Vasco Silva trabalha num call center e repete vezes sem conta o monólogo número um do manual que lhe entregaram, e em cujo verso se refere que os colaboradores são o nosso melhor activo. O silêncio pelo qual anseia restringe-se à intimidade de uma casa de banho, porque na escassa pausa para o cigarro há o colega que se lamenta da vida e insulta o chefe, o que comenta a bola e as gajas, o que fala de si próprio com uma admiração reservada aos santos.

Hora e meia, um autocarro e um barco depois chega a casa. Vai cansado, as cordas vocais ressequidas como duas gavinhas expostas ao sol. Entra na cozinha que é exígua, na sala onde cabe uma televisão, um sofá e um livro de ficção científica, no quarto onde uma cama de corpo e meio ocupa a quase totalidade de uma alcatifa cinzenta velha. Bebe uma cerveja fresca e olha para as paredes vazias e por pintar, para as janelas de madeira fissuradas e deslavadas, para um silêncio que o sossega porque o poupa ao seu próprio tom de voz.

Ao fim de semana recebe a Otília a quem beija com um fervor feito de saudade e ausência, de desejo, de vontade, de amor. Ela trabalha isolada num laboratório, homogeneizando reagentes, analisando resultados, detectando tendências. Enroscam-se num sofá e Otília fala da vida, dos colegas que não tem, dos diálogos que não acontecem, das ausências esmagadoras de som. Vasco passa-lhe a mão pelo cabelo revolto, beija-lhe a nuca e olha para lá das janelas ressequidas, das paredes por pintar, da alcatifa puída e velha. O monólogo de Otília embala-o, e ele sente que não conseguiria sobreviver sem aquela média feita de um falar constante e de um silêncio permanente.

Quando recolhem ao quarto Vasco despe-a com vagar, botão a botão, fecho a fecho, palmo a palmo. Percorre-lhe o corpo como se tudo se resumisse a uma boca que sente, vê, palpa, prova. Amam-se indiferentes aos gritos da vizinha, aos carros que buzinam, aos cães que ladram à lua. Quando acabam, Vasco olha para o relógio porque os hábitos demoram a morrer, e na cabeça dele o tempo é cronometrado, os custos são controlados e o impacto dos indirectos tem de ser medido com rigor. Depois vê Otília deitada de lado num pudor que o comove e sussurra-lhe ao ouvido o monólogo número um dos manuais. Ela sorri com o corpo todo, numa generosidade sensual que sempre vence os hábitos que custam a morrer.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

JdB



3 comentários:

  1. Para além da beleza da escrita e da subtileza com que descreve os momentos e os sítios, este texto comoveu-me.
    Aqui consegue confrontar o leitor com a realidade do rigor, da eficácia, da desumanização Taylorista das tarefas cronometradas e a compensação desta vida que se revela na precariedade das paredes por pintar e uma noite de amor em cima de uma cama de corpo e meio, assente numa alcatifa puída.
    Estes são os jovens do séc. XXI

    Em 3 palavras descreve o mundo.
    Bom fim de semana JdB

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  2. Lovely music. But i'm trying to work and i keep being distracted by thoughts of Parisian cafes or learning tango! PO

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  3. Gostei muito do Vasco Silva, parece-me boa pessoa :)

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