07 maio 2012

Vai um gin do Peter's?

Estamos pouco habituados a ver filmes portugueses premiados. Menos ainda com sucessos de bilheteira. Pois o realizador de «TABU»(1)  somou os dois feitos. Já no filme anterior – «Aquele Querido Mês de Agosto» (2008) – tinha conquistado o público.  
Em 2012, Miguel Gomes (M.G.) foi mais longe e, quase em despique com outro filme de êxito, a preto-e-branco («O Artista»), TABU também dispensou a cor e até as falas, ficando-se pela voz-off, em toda a segunda parte. Repare-se que a ausência de cor neste filme pouco tem a ver com a película francesa, de revivalismo puro dos anos 20. É um facto que M.G. também se reporta ao tempo do cinema-mudo, mas nem tanto para o recriar (como o galardoado dos Óscares deste ano), se não como homenagem à genialidade do grande realizador do início do século XX: F.W. Murnau. Inspira-se, sobretudo, na última realização deste cineasta, também passada em África. Além disso, adopta para nome da protagonista o título do filme mais famoso do alemão – «Aurora». 


Como em Murnau, a fotografia é de uma beleza extrema, permitindo fixar objectos e paisagens quase elevados a co-personagens da trama em curso. A árvore magnífica, de copa majestosa e uma profusão de ramos escultural, poderia evocar a árvore da vida, ou a metáfora bíblica sobre a árvore pré-figurativa do Reino dos Céus, onde todas as aves se vêm abrigar. Aqui, é a sombra salvadora dos calores asfixiantes da savana e a marca mais digna e senhorial da presença humana no seio da natureza, verdadeiro ex-libris das grandes fazendas coloniais.

Na ironia saudável do realizador e co-argumentista de TABU, a mesma árvore é igualmente filmada num episódio cómico, como cenário da capa de disco de uma banda dos anos 60, com as poses ridículas e incrivelmente artificiais da era do vinyl. Cada cantor, de fato branco e gravata, aparece pendurado no seu galho: ora hieráticos como se estivessem num salão, ora de braços abertos num suposto acolhimento, totalmente despropositado no meio da folhagem. É de gargalhada, mas sem resvalar para a piada corrosiva. Este género de cenas são recorrentes, embora sem afectar a profundidade da narrativa contada em off.
A comicidade de M.G. é dos seus pontos fortes, conseguindo um equilíbrio bem hábil no saber expor e assumir maximamente, sem humilhar ou apoucar o próximo. De facto, os seus filmes estão impregnados de humanidade, de respeito pelo outro, pelo mais diferente – único, de uma diversidade utilíssima e de uma riqueza impossível de abarcar na totalidade. Daí a vastidão do horizonte narrativo (lembrando Manoel de Oliveira), assim como alguns traços de grandeza nas suas personagens, apesar de todos os óbvios paradoxos e fraquezas de cada um (lembrando Camilo). Não há mesquinhez, ainda que haja um par de atitudes repugnantes. Respira-se! Porque há noção do valor das pessoas, criticando-se sem contaminar tudo de um desdém arrogante e julgador. Até os momentos cómicos ajudam a desmascarar os erros. Mas resiste-se à desqualificação simplista e moralista das personagens. Exemplo disso é o sonho alucinado da velhinha, para explicar por que voltara a torrar euros no Casino… Ou a insistência ainda mais alucinada, da mesma velhinha, a alertar contra um jacaré que ameaçava morder um Gianluca, a soar a galã de ficção. Ou a solução engenhosa, a contento de várias partes, para branquear um disparo precipitado e mortífero, no Norte de Moçambique, numa observação mordaz às habilidades dos políticos e à pouca fiabilidade dos supostos registos históricos… Numa palavra: lucidez. Uma lucidez temperada pela compaixão, porque se baseia na busca ousada para sintonizar com o outro, colocando-se nos seus moucassins, segundo um provérbio índio. A partir da perspectiva de vários outros, franqueiam-se novos olhares sobre a realidade. Esta multiplicidade de ópticas evoca a prodigalidade de heterónimos de Fernando Pessoa (em exposição na Gulbenkian, até ontem), sedento por explorar novos pontos de focagem do universo, qual camera-man
Percebemos, na segunda parte, muito do que nos parecera deslocado e febril na velhinha da primeira parte. Inspirado em Murnau, M.G. quis jogar com os contrastes – um processo narrativo invulgar no cinema actual. Vida e morte, anciania e juventude, cidade e campo, trivialidade e aventura, abandono e paixão fogosa confrontam-se em directo, em sentido cronológico inverso, i.e., dos últimos momentos de uma longa vida, para o fulgor dos primórdios da idade adulta. Saltamos do isolamento e inadaptações de uma anciã (Primeira Parte – “Paraíso Perdido), para o início da gloriosa década de 60, em que vivia numa fazenda gigantesca do sudeste africano, no sopé do monte Tabu (Segunda Parte: “Paraíso”).


A vida alegre e faustosa da África portuguesa não esconde, ali, o atordoamento de vários meninos da cidade, perdidos numa vastidão ecológica, sob um sol tórrido, onde as excentricidades são dos poucos entreténs que lhes emprestam alguma adrenalina. Aí entra um jacaré pequenino, chegado num vasto alguidar transportado por dois negros, ao som de um batuque tribal. Aí entram também inúmeros aventureiros, com espaço para as suas experimentações existenciais, livres da pressão das sociedades pequenas. Aí entram os sonhos de uma jovem (igual a tantas outras) a quem nada parecia faltar… para além de alguma noção do quotidiano – que é a forma mais concreta de se tocar a realidade. Ou não. O que a muitos faltava em sentido de vida, sobejava-lhes em tempo, meios, hobbies e um horizonte de capim a perder de vista, onde animais e caçadores costumavam brincar às escondidas.



O texto em off é riquíssimo, ajudando-nos a viajar por um mundo aparentemente longínquo da nossa condição. E que julgávamos enterrado, desde que os últimos colonos brancos se deixaram de sentir os anfitriões do continente verde.


Um guarda-roupa impecável, bem caracterizado, a evocar aquele Portugal transplantado para o Ultramar, que parecia viver num Verão infindo, equivalente a férias eternas. Piscina ou praia, bicicleta, jipes, barcos, jardins colossais, courts de ténis, caçadas, festas ao ar livre ponteavam a existência daquela elite vinda da metrópole. Aliás, sua ilustre representante. No entanto, os anseios e sentimentos de cada um moldavam mais os comportamentos e as opções de vida do que as próprias circunstâncias. Por mais irreais que fossem.


Ainda assistimos ao regresso (1975) atabalhoado de Aurora a Lisboa, sob os disparos da guerra que se seguiu à descolonização. E inicia-se, então, uma segunda existência, diametralmente oposta, confinada aos pequenos andares de uma malha urbana, densa em betão e stress.



Aurora na primeira parte de «Tabu» e segunda da sua vida,

mantendo inúmeras ligações a África: visíveis e invisíveis


Deparamo-nos ainda com uma escolha afectiva imprevista, a privilegiar uma solução mais austera, por não ter querido renegar todo o alcance do que antes vivera, em especial dos atropelos. Escolhera resgatá-los, ao menos simbolicamente. Desta vez não haveria branqueamentos condescendentes do passado. Embora até fossem compreensíveis. Mas se encararmos os factos com a frontalidade da velhinha…    
A originalidade deste grande contador de histórias rodadas em filme, vale bem o galardão atribuído a Miguel Gomes no Festival de Berlim e prova quanto a escassez de meios não tolhe o talento. Antes o aguçará. Nos seus filmes, toda a equipa técnica se desdobra em múltiplas funções, de figurantes a produtores da banda sonora, ajudantes de cenógrafo, etc. Claro que a falta de condições complicará o trabalho. O próprio Michelangelo demorou muito mais tempo (no seu padrão) para esculpir o célebre David, por só dispor de uma pedra com um enorme buraco. Talvez isso justifique a posição original da mega escultura de Florença. Mas ocorre pensar que há males que vêm por bem, quando uma matéria-prima especialmente inóspita faz o artista superar-se, beneficiando a obra e cada um de nós!




Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
TABÚ
Realização:
Miguel Gomes
Argumento:
Uma equipa humoristicamente chamada de “Comité Central”, com Miguel Gomes e Mariana Ricardo nos papéis principais.  
Produzido por:
Luís Urbano e Sandro Aguilar
Fotografia:
Rui Poças
Som:
Vasco Pimentel
Duração:
118 min.
Ano:      
2012
País:
Portugal, Alemanha, Brasil e França

        Elenco:

Laura Soveral (Aurora sénior)
Ana Moreira   (Aurora em nova)
Carloto Cotta  (Gianluca Ventura em novo)
Henrique Espírito Santo (Gianluca em mais velho)
Ivo Müller        (marido de Aurora )
Teresa Madruga (Pilar, vizinha da velha Aurora)
Isabel Muñoz Cardoso (Santa, a empregada africana)
Manuel Mesquita (Mário)

Local das filmagens:
Portugal-Lisboa, Moçambique.
Site oficial:

http://www.osomeafuria.com/films/3/35/

Prémios  da Crítica e Alfred Bauer no Festival de Berlim’ 2012

2 comentários:

  1. Belíssimo filme!
    Gostei muito de o (re)ver, através das suas palavras.
    É de nele mergulharmos, sem preconceitos e com os sentidos despertos.
    Flores,

    gi.

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  2. Belíssimo comentário o seu, gi, como sempre. Adoro aproveitar para lhe dizer q. acho adorável a forma como escreve a nossa querida língua portuguesa. Obrigada pelo seu comentário, com flores (chegaram-me fresquíssimas), bem contente por confirmar q. houve mais fãs do filme do Miguel Gomes, MZ

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