02 julho 2012

Vai um gin do Peter’s?

O autor da estátua equestre de D.José, no Terreiro do Paço, e dos presépios setecentistas, está em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), para divulgar a amplitude da obra de Machado de Castro.
Até 30 de Setembro, o MNAA pretende revelar um homem multifacetado: percursor da Academia de Belas Artes, escultor régio, fazedor da estatuária dos reinados de D.José, D.Maria I e D.João VI, teorizador de arte. O título explica o desafio – «O Virtuoso Criador: Joaquim Machado de Castro»(1) – evocando uma longuíssima produção artística, que acompanhou os seus 91 anos de vida, de 1731 a 1822.
O virtuoso criador foi também um empreendedor incansável e um aluno prodígio, que soube captar as tendências da arte italiana, sem nunca ter conseguido ir a Itália (um dos desgostos da sua vida), através do trabalho exímio dos grandes mestres italianos que conheceu durante a edificação do Convento de Mafra, onde colaborou como ajudante. Por interpostos artistas, bebeu as inovações da escola de Canova, adoptando as novas proporções das figuras (de 8,9 a 9), mais alongadas e ágeis do que a escala atarracada (de 7,5) que ainda vigorava em Portugal. A nova volumetria das suas estátuas ou a riqueza mímica das figuras conferiam às peças em pedra, madeira, metal, um movimento surpreendente e sumptuoso, muito apreciado pelos monarcas do Iluminismo e por outros mecenas.  
Várias outras novidades italianas inspiraram a revolução que Machado de Castro (M.C.) operou também no ensino das artes, concebendo uma formação académica bem distinta do ensino prático dos artesãos e demais artífices manuais. Além dos conhecimentos teóricos, a introdução do desenho para preparar todo o labor de esculpir, constituiu uma novidade absoluta na preparação da nova vaga de estudantes. Para a aprendizagem rigorosa da imagética, M.C. vulgarizou o recurso às Academias do Nu(2), proporcionando um estudo criterioso da anatomia humana.
À fundação da «Aula» seguiu-se a formação do «Laboratório», numa matriz inédita, obviamente demarcada das oficinas artesanais. Deste modo, alterou por completo o panorama das artes plásticas em Portugal: do ensino à praxis.  
A obra que lançou a sua carreira foi a estátua equestre do rei, depois de ganhar o concurso para as comemorações dos 60 anos de D.José. Foi inaugurada a 25 de Maio de 1775. M.C. contava já com 40 anos. Apesar de mal refeitos da devastadora destruição do terramoto, a coroa aproveitou a efeméride real para consagrar o poder régio e terminar com pompa a onda de reconstrução inaugurada pelo Marquês de Pombal, logo após o terrível sismo de 1 de Novembro de 1755(3). A presidir ao enorme terreiro – sagrado Praça do Comércio – o soberano pontificava sobre toda a actividade mercantil do reino, procurando acalentar o sucesso de uma burguesia emergente.

Só o transporte do portentoso conjunto escultórico (incluindo também o pedestal concebido por Reynaldo dos Santos, com os grupos alegóricos: o Triunfo e a Fama) demorou 3 a 4 dias a chegar ao local de implantação, onde passaria a ficar guardado, 24h por dia, por duas sentinelas, como se se tratasse do próprio D.José. Os animados festejos mereceram um esforço de preparação longo, além de custos financeiros avultados e devidamente reportados no «Mapa de Toda a Despesa que fez o Senado da Câmara na Função de Inauguração da Estátua Equestre» (desenho à pena, de 1777), exibido numa das vitrinas da exposição do MNAA. Nessa vitrina, estão também peças de uso corrente com o desenho da grande estátua estampado num leque, num prato ou num relógio. 
«A 25 de Maio de 1775, (…)  chegava à Praça do Comércio depois de um cortejo de três dias, a estátua equestre de D. José I, da autoria de Joaquim Machado de Castro. Aqui fica um "registo" desse momento...»
Pena que no Portugal daquele tempo, não fossem reconhecidos nem o mérito, nem o papel enriquecedor dos artistas na sociedade, para lá de meros obreiros de determinada peça. De facto,   Machado de Castro não foi convidado para a cerimónia de inauguração da estátua que esculpira. Entre os muitos participantes não houve lugar para o grande escultor, apesar de ser dos maiores da nossa história. Da estátua, reza a tradição que as serpentes ali esculpidas, em pedra, a têm protegido dos pombos, tal o realismo das figuras. 


O escultor a apresentar ao Marquês de Pombal o projecto do Monumento a D. José I.
A estátua seria dourado, conforme sugerem as maquettes e os quadros da época. Com o reflexo da luz, o cavalo teria enegrecido, o que explica a alcunha dada pelos ingleses que transitavam por Lisboa, no séc. XIX: Black Horse. A oxidação posterior teria esverdeado o metal.
Embora as encomendas reais e de aristocratas, onde se inclui o próprio Marquês, começassem a jorrar, só no reinado da filha de D.José, em 1782, M.C. foi oficialmente declarado escultor régio. Inteiramente justo, atendendo ao ritmo frenético da produção do seu Laboratório (com numerosos colaboradores, elencados numa das paredes da exposição), visando marcar toda a estatuária do regime, com a grandiloquência e monumentalidade que conhecera em Mafra, mas adaptando-se a escalas bem menores. As imagens na fachada da Basílica da Estrela, mandada erigir por D.Maria I, são da sua autoria. Assim como inúmeras imagens do interior: Sta.Teresa de Ávila, S.João Evangelista, Sto.Elias, etc. Segundo os textos no MNAA: M.C. quis deixar (e conseguiu!) uma escultura em versão de autor.  
Para lá da arte religiosa, interessavam-lhe também as encomendas para o Palácio da Ajuda ou os Jardins Reais de Belém e de Caxias, salpicados de Apolos, faunos, Dianas e outras figuras mitológicas, maravilhosamente talhadas em pedra branca. Em dois gigantescos dispositivos, a correr em contínuo, o MNAA oferece-nos um passeio pelos espaços ajardinados onde Machado de Castro deixou imensa obra feita.

Nos Jardins da Quinta Real de Caxias
Na Basílica da Estrela, há um dos melhores presépios do escultor, com uma profusão infindável de personagens, a estender-se pelos trilhos acidentados que formam um mega cenário marcado por níveis diferenciados, destinados a acolher espaços cénicos distintos, quais mosaicos de uma narrativa cronologicamente mais vasta, a percorrer vários passos da vida de Jesus. À riqueza cronológica junta-se a diversidade sociológica dos seus presépios, que procuram dar lugar a todos os grupos actuantes na sociedade. Há, inclusive (nalguns casos), a figura do homem do chapéu, o curioso que fica embevecido com o Menino e lhe presta homenagem, numa vénia muito humilde e algo teatral, descobrindo a cabeça. Para além de si, nada mais tinha a oferecer… Assemelha-se ao espectador incauto, de qualquer época, que apareça junto às palhinhas, como por mero acaso, sem pertencer a nenhum dos fios condutores pelas quais se movem as múltiplas caravanas dos viajantes que habitam aquelas vastíssimas instalações.   

Maquineta Adoração dos pastores (1766), na Sé de Lisboa.
Na exposição, apenas vemos um presépio de pequenas dimensões (do início do séc. XIX), cingindo-se a pouco mais do que as figuras nucleares, mas com tal agilidade de formas, que parece um instantâneo em 3D. A simplicidade do cenário faz jus à pobreza original. E realça, espantosamente, o contraste entre uma manjedoura modesta, onde uma vaca e um burro andam à solta por entre uma pequena família que ali se aninhou, e as três figuras majestosas dos Magos, carregados de preciosidades para oferecer àquele misterioso Bebé. Curiosamente, S.José tem uma idade bem próxima de Maria, com o aspecto vigoroso de um adulto na força da vida.      Lindas e especialmente ricas são três das representações marianas: a Virgem da Piedade (1785, em Salvaterra de Magos), Nossa Senhora da Encarnação (1803, da Igreja da Encarnação, ao Chiado) e a Virgem Imaculada (da colecção do MNAA). Em poses muito naturais, cheias de movimento, dir-se-ia insufladas de vida. Revestidas de maravilhosos panejamentos policromados, lembram figuras de corte, embora em versão sóbria, trajadas com telas floridas e partes a ouro, num efeito esplendoroso. Sobretudo, as feições muito delicadas do rosto e das mãos, em gestos bem femininos, evocam uma Mãe meiga, de uma beleza contagiante e suave.    
Na primeira sala da exposição, a contextualizar a época, há também peças interessantes. Assim é a tela dita do Marquês de Pombal expulsando os Jesuítas (1771?), com uma simbologia eloquente, quer relativamente à concepção do poder absolutista, onde a pose de Chefe de Estado não deixa equívocos quanto à (plena) autoridade do Primeiro-Ministro de D.José, quer na finalidade visada com a eliminação da Companhia de Jesus a tentar recuperar para a coroa o poder de aquém e além-mar, quer na exibição do trabalho realizado ostentando a estátua equestre em dourado e os planos da baixa pombanina. Alguns mapas pousados no chão (à direita) e a janela que ocupa quase todo o fundo do quadro, num efeito de ecrã gigante, a mostrar o movimento das naus junto à zona ribeirinha da capital, assinalam bem as prioridades políticas do seu governo, que se esforçou por fazer reverberar a sua voz de comando por todos os recantos do Império. Uma representação de poder idealizada, que os pintores franceses fizeram por encomenda. Estamos em pleno período dos déspotas iluminados.       
    
Tela de Louis-Michel van Loo e Claude Joseph Vernet.

Repare-se no dourado da estátua, no extremo esquerdo da tela.

Muito mais haveria para contar sobre o escultor e a sua exposição! Uma parcela da história e do património do último quartel do século XVIII e primeiro do XIX, estão ali expostos, ajudando-nos a descobrir obras de arte espalhadas por lugares menos conhecidos e explorados, em volta de Lisboa. Um convite para uma viagem ao passado, mesmo aqui ao lado…   

Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)_____________
(1) MNAA – Rua das Janelas Verdes; tel. 21 3912800, www.mnaa.imc-ip.pt, mnarteantiga@imc-ip.pt, horário:  3ª feira: 14h00-18h00 e 4ª feira a Domingo: 10h00-18h00.
(2) Demorou algum tempo até os modelos que pousavam nestas academias deixarem de ser apedrejados pela população, que os maltratava, considerando-os um atentado aos bons costumes.  
(3)  Coincidentemente, foi o dia de nascimento de uma das filhas da Imperatriz austríaca Maria Teresa – a célebre Maria Antonieta, cujos padrinhos eram os reis de Portugal. Impedidos de comparecer ao baptismo da sua afilhada, em Viena, no rescaldo do terramoto, foram representados na cerimónia pelo irmão mais velho da princesa. Note-se que havia ligações de parentesco entre as duas Casas reais, uma vez que a mãe de D.José era uma Habsburgo. 

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