Dr. João, Sr. Engenheiro, Dôtor, Sr. Bragança,
utente número coisa e tal dos serviços municipalizados das águas de cascais,
A seu pedido, junto segue o relato do que foi o dia de hoje na vida do anjo. Falar em dia de hoje é algo vago e porventura inútil, porque aqui em cima não há manhã nem tarde, o
infinito está ao virar de uma esquina, a eternidade é uma garantia, a sucessão
do tempo não tem mais do que uma dimensão fantasiosa ou de
organização terrena do caminho. Aqui em cima o tudo e o nada unem-se numa
perfeição irrepreensível, numa serenidade difícil de imaginar face às leis da
física e do atrito entre os corpos.
Tudo começa quando o anjo terá sido visto a sair de uma nuvem, talvez
um cúmulo-nimbo, embora também pudesse ser um nimbo-estrato. É
irrelevante, no entanto, para a matéria que aqui nos traz. Terá virado à direita em direcção
à Estrada de Santiago (Via Láctea, não um itinerário complementar) e terá apanhado gelo, vento e,
quiçá, nevoeiro. Terá dominado bem o carro que conduzia mas, não obstante, terá
sido mandado parar por uma brigada. Perante o ar sério e inquiridor do agente
de autoridade terá respondido com a convicção dos honestos: caramba! Já tenho 18 anos, já tenho carta... O polícia (e usemos esta expressão para poupar palavras inúteis) terá mantido um fácies sério enquanto
inspeccionava os documentos, indiferente à firmeza do caramba! Já tenho 18 anos, já tenho carta... Terá mandado seguir o
anjo que estranhou, quando même, não
ouvir recomendações sobre a condução defensiva, os faróis de nevoeiro ou o
encanto dos carros automáticos. Semi-embrenhado na neblina matinal, o anjo terá
olhado para trás uma fracção de segundo. O polícia transformava-se num
personagem feminino, etéreo, de uma beleza irrepetível nos seus braços abertos
e acolhedores, que convertia a quase-intempérie num dia de sol radioso.
O anjo terá sido visto, pouco tempo depois, a entrar numa agência de
viagens. Embora a fealdade seja um atributo terreno incompatível com a suprema
beleza do céu, o facto é que pelas nossas portas entra gente que, aí em baixo, seria considerada esteticamente desfavorecida. Ninguém muda quando aqui entra.
O que muda é a forma como olhamos para os outros, porque o desafio da perfeição
e da descoberta é também esse. Mas a rapariga que, sentada e fardada recebeu o anjo, tendo por trás fotografias de cidades lindas, paisagens
deslumbrantes, gastronomia pecaminosa (uma expressão curiosa, considerando que falamos do céu) gente feliz e de mãos dadas a
passear na praia ao pôr-do-sol era, de facto feia. O anjo terá falado
em viajar, o que terá sido recebido com um hmmmmm
de dúvida, uma inquirição quanto a
autorizações superiores e umas narinas que se agitavam num fervor indomável. Caramba! Já tenho 18 anos, já posso viajar...
O anjo terá saído de forma mais abrupta, tendo na mão um desdobrável gorduroso e dobrado nos cantos, com fotografias desfocadas e preços desactualizados. Terá olhado
para trás, e a fealdade da funcionária dera lugar à perfeição do rosto, à
transparência dos olhos (um qualificativo da alma, não da cor), ao abraço com que se sentiu envolvida, à voz suave com
que lhe desejaram boa viagem. Quando voltou a olhar para o folheto já as
fotografias eram novas, o papel era de boa gramagem e o périplo Estoril –
Constância – Smir afigurava-se-lhe um destino de eleição.
O anjo ter-se-á dirigido então para a última etapa do seu dia de hoje,
qualquer que seja o hoje porque aqui
em cima também não há amanhã nem ontem, como sabe. Era dia de eleições e
o anjo ter-se-á dirigido à assembleia de voto para escolher a lista. No céu não
há, de facto eleições, porque os conceitos de maioria qualificada,
comissão nacional de eleições e sufrágio universal são-nos estranhos, e usamo-los para nos distrairmos em tardes
chuvosas de domingo, embora, em bom rigor, também não haja tardes, nem chuvas.
Enfim, sigamos... À porta aprumou-se um cavalheiro de barba hirsuta, boina negra, sapatos sujos e camisa
desfraldada. Mandou parar o anjo e falou-lhe da arma do povo, dos direitos, da
casa da democracia, dos pobres e dos injustiçados, da troika e do
fmi, do vil metal, do estado social e da zona oeste como terreno fértil para
plantar pêra rocha. Acabou por mencionar a maioridade, o votozinho e tal e coisa. O anjo voltou a repetir, com a
certeza dos convictos: Caramba! Já tenho 18 anos, já posso votar... E
assim fez. Terá votado em vários candidatos: na Mariana TM, no Lourenço A, na Vera C, na Inês L e também na Inês C. Porque lhe apeteceu, ainda que fosse
contra as regras, terá votado também na Madame Pite, na Estrela da Sabedoria e
na Quatro Letras. Quando saía da assembleia de voto, o homem da barba hirsuta
terá dado lugar à mesma figura feminina e maternal que encontrara à saída da
Via Láctea e da agência de viagens. Era a mesma beleza, a mesma serenidade, a mesma envolvência. A Senhora terá passado uma mão pelo rosto do anjo e terá dito: venceram todos aqueles em quem votaste.
O anjo dirigiu-se então a um parque. Segundo os relógios terrenos pouco passava da meia-noite. Alguns minutos, apenas. Num banco, com as pernas a
baloiçar, tendo ao lado um caderno onde havia histórias escritas com uma caligrafia perfeita e um desenho onde se via a palavra livro, uma criança sorria. Não sabia bem se estava à espera de alguém ou se alguém a esperava, mas estava certa de um encontro que iria acontecer em breve. A confiança estava-lhe estampada no rosto. O anjo aproximou-se e, numa fracção de
segundo, estremeceu. Era ele, o próprio anjo, que estava sentado naquele banco,
mas onze anos antes. Quando se aproximou e se sentou no mesmo banco já não eram dois vultos, mas apenas
um, a estenderem uma mão pequena a Nossa Senhora.
Dr. João, Sr. Engenheiro, Dôtor, Sr. Bragança,
utente número coisa e tal dos serviços municipalizados das águas de cascais,
Chegamos ao fim do relato. Estou certo de que se questionará, por
cansaço seguramente, por que motivo foi sempre usada a expressão terá, exceptuando-se o parágrafo onde o
anjo encontra a criança. Eu explico: em bom rigor, todo este relato está no
domínio da fantasia. Ninguém sabe o que se passou neste dia quatro de novembro
de dois mil e doze no reino do céu. Daí o tempo verbal usado. Presumimos que
tenha sido – ou possa ter sido – assim. A certeza está só no parágrafo do
encontro. Quanto a esse, temos a certeza de que foi assim, porque aqui no céu somos donos de todas as certezas encantatórias.
Faça o favor de ser feliz.
***
Partiste hoje, mas há onze anos. O nosso coração continua a ser todo
teu. Cada um dos nossos minutos é vivido contigo no pensamento e na alma. Não há um segundo, um instante que seja, em
que não estejas presente. És a evidência da imensidão do Céu, do colo de Nossa
Senhora que todos acolhe, da existência de um Deus que não é senão Amor. Sabemos
onde estás e que um dia nos encontraremos todos. Talvez seja no banco de jardim onde
percebemos que a criança de sete anos já era um anjo, e que o anjo que guia,
viaja e vota não é mais do que a criança de sete anos que aguarda, sentada, que a
eternidade a venha buscar.
JdB (em nome de todos aqueles a quem fazes tanta falta)
Um beijo e um abraço muito apertado a todos a quem este anjo protege, mas também faz muita falta.
ResponderEliminarUm abraço rendido ao JdB pela maravilha deste conto.
Querido João,
ResponderEliminarParabéns por este seu dom de perpetuar o que vale a pena.
O seu anjinho paira na glória celestial e assim nos vai iluminando a todos.
Graças a Deus!
Beijinhos "abensonhados"
obrigado JdB por nos brindar com estes momentos tão íntimos, tão belos, tão bem escritos. Por segundos, fechei os olhos e senti-me a pairar no céu.
ResponderEliminarBoa semana
Maf
O Amor e Carinho do Pai do Anjo, sentido e vertido aqui.
ResponderEliminarMas esse Anjo tem mais do que os outros Anjos, tem o deleite e a paz de acompanhar e animar este Amor imenso que derrama sempre, e que guiará ambos para o abraço e colo da eternidade.
Ambos sabem que chegará o tempo de ser o que não aconteceu, e para sempre.
ATM