04 novembro 2012

Crónica sobre um anjo

Dr. João, Sr. Engenheiro, Dôtor, Sr. Bragança, utente número coisa e tal dos serviços municipalizados das águas de cascais,

A seu pedido, junto segue o relato do que foi o dia de hoje na vida do anjo. Falar em dia de hoje é algo vago e porventura inútil, porque aqui em cima não há manhã nem tarde, o infinito está ao virar de uma esquina, a eternidade é uma garantia, a sucessão do tempo não tem mais do que uma dimensão fantasiosa ou de organização terrena do caminho. Aqui em cima o tudo e o nada unem-se numa perfeição irrepreensível, numa serenidade difícil de imaginar face às leis da física e do atrito entre os corpos.

Tudo começa quando o anjo terá sido visto a sair de uma nuvem, talvez um cúmulo-nimbo, embora também pudesse ser um nimbo-estrato. É irrelevante, no entanto, para a matéria que aqui nos traz. Terá virado à direita em direcção à Estrada de Santiago (Via Láctea, não um itinerário complementar) e terá apanhado gelo, vento e, quiçá, nevoeiro. Terá dominado bem o carro que conduzia mas, não obstante, terá sido mandado parar por uma brigada. Perante o ar sério e inquiridor do agente de autoridade terá respondido com a convicção dos honestos: caramba! Já tenho 18 anos, já tenho carta... O polícia (e usemos esta expressão para poupar palavras inúteis) terá mantido um fácies sério enquanto inspeccionava os documentos, indiferente à firmeza do caramba! Já tenho 18 anos, já tenho carta... Terá mandado seguir o anjo que estranhou, quando même, não ouvir recomendações sobre a condução defensiva, os faróis de nevoeiro ou o encanto dos carros automáticos. Semi-embrenhado na neblina matinal, o anjo terá olhado para trás uma fracção de segundo. O polícia transformava-se num personagem feminino, etéreo, de uma beleza irrepetível nos seus braços abertos e acolhedores, que convertia a quase-intempérie num dia de sol radioso.

O anjo terá sido visto, pouco tempo depois, a entrar numa agência de viagens. Embora a fealdade seja um atributo terreno incompatível com a suprema beleza do céu, o facto é que pelas nossas portas entra gente que, aí em baixo, seria considerada esteticamente desfavorecida. Ninguém muda quando aqui entra. O que muda é a forma como olhamos para os outros, porque o desafio da perfeição e da descoberta é também esse. Mas a rapariga que, sentada e fardada recebeu o anjo, tendo por trás fotografias de cidades lindas, paisagens deslumbrantes, gastronomia pecaminosa (uma expressão curiosa, considerando que falamos do céu) gente feliz e de mãos dadas a passear na praia ao pôr-do-sol era, de facto feia. O anjo terá falado em viajar, o que terá sido recebido com um hmmmmm de dúvida, uma inquirição quanto a autorizações superiores e umas narinas que se agitavam num fervor indomável. Caramba! Já tenho 18 anos, já posso viajar... O anjo terá saído de forma mais abrupta, tendo na mão um desdobrável gorduroso e dobrado nos cantos, com fotografias desfocadas e preços desactualizados. Terá olhado para trás, e a fealdade da funcionária dera lugar à perfeição do rosto, à transparência dos olhos (um qualificativo da alma, não da cor), ao abraço com que se sentiu envolvida, à voz suave com que lhe desejaram boa viagem. Quando voltou a olhar para o folheto já as fotografias eram novas, o papel era de boa gramagem e o périplo Estoril – Constância – Smir afigurava-se-lhe um destino de eleição.

O anjo ter-se-á dirigido então para a última etapa do seu dia de hoje, qualquer que seja o hoje porque aqui em cima também não há amanhã nem ontem, como sabe. Era dia de eleições e o anjo ter-se-á dirigido à assembleia de voto para escolher a lista. No céu não há, de facto eleições, porque os conceitos de maioria qualificada, comissão nacional de eleições e sufrágio universal são-nos estranhos, e usamo-los para nos distrairmos em tardes chuvosas de domingo, embora, em bom rigor, também não haja tardes, nem chuvas. Enfim, sigamos... À porta aprumou-se um cavalheiro de barba hirsuta,  boina negra, sapatos sujos e camisa desfraldada. Mandou parar o anjo e falou-lhe da arma do povo, dos direitos, da casa da democracia, dos pobres e dos injustiçados, da troika e do fmi, do vil metal, do estado social e da zona oeste como terreno fértil para plantar pêra rocha. Acabou por mencionar a maioridade, o votozinho e tal e coisa. O anjo voltou a repetir, com a certeza dos convictos:  Caramba! Já tenho 18 anos, já posso votar... E assim fez. Terá votado em vários candidatos: na Mariana TM, no Lourenço A, na Vera C, na Inês L e também na Inês C. Porque lhe apeteceu, ainda que fosse contra as regras, terá votado também na Madame Pite, na Estrela da Sabedoria e na Quatro Letras. Quando saía da assembleia de voto, o homem da barba hirsuta terá dado lugar à mesma figura feminina e maternal que encontrara à saída da Via Láctea e da agência de viagens. Era a mesma beleza, a mesma serenidade, a mesma envolvência. A Senhora terá passado uma mão pelo rosto do anjo e terá dito: venceram todos aqueles em quem votaste      

O anjo dirigiu-se então a um parque. Segundo os relógios terrenos pouco passava da meia-noite. Alguns minutos, apenas. Num banco, com as pernas a baloiçar, tendo ao lado um caderno onde havia histórias escritas com uma caligrafia perfeita e um desenho onde se via a palavra livro, uma criança sorria. Não sabia bem se estava à espera de alguém ou se alguém a esperava, mas estava certa de um encontro que iria acontecer em breve. A confiança estava-lhe estampada no rosto. O anjo aproximou-se e, numa fracção de segundo, estremeceu. Era ele, o próprio anjo, que estava sentado naquele banco, mas onze anos antes. Quando se aproximou e se sentou no mesmo banco já não eram dois vultos, mas apenas um, a estenderem uma mão pequena a Nossa Senhora.

Dr. João, Sr. Engenheiro, Dôtor, Sr. Bragança, utente número coisa e tal dos serviços municipalizados das águas de cascais,

Chegamos ao fim do relato. Estou certo de que se questionará, por cansaço seguramente, por que motivo foi sempre usada a expressão terá, exceptuando-se o parágrafo onde o anjo encontra a criança. Eu explico: em bom rigor, todo este relato está no domínio da fantasia. Ninguém sabe o que se passou neste dia quatro de novembro de dois mil e doze no reino do céu. Daí o tempo verbal usado. Presumimos que tenha sido – ou possa ter sido – assim. A certeza está só no parágrafo do encontro. Quanto a esse, temos a certeza de que foi assim, porque aqui no céu somos donos de todas as certezas encantatórias.

Faça o favor de ser feliz.

***

Partiste hoje, mas há onze anos. O nosso coração continua a ser todo teu. Cada um dos nossos minutos é vivido contigo no pensamento e na alma.  Não há um segundo, um instante que seja, em que não estejas presente. És a evidência da imensidão do Céu, do colo de Nossa Senhora que todos acolhe, da existência de um Deus que não é senão Amor. Sabemos onde estás e que um dia nos encontraremos todos. Talvez seja no banco de jardim onde percebemos que a criança de sete anos já era um anjo, e que o anjo que guia, viaja e vota não é mais do que a criança de sete anos que aguarda, sentada, que a eternidade a venha buscar.

JdB (em nome de todos aqueles a quem fazes tanta falta) 

4 comentários:

  1. Um beijo e um abraço muito apertado a todos a quem este anjo protege, mas também faz muita falta.
    Um abraço rendido ao JdB pela maravilha deste conto.

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  2. Querido João,
    Parabéns por este seu dom de perpetuar o que vale a pena.
    O seu anjinho paira na glória celestial e assim nos vai iluminando a todos.
    Graças a Deus!
    Beijinhos "abensonhados"

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  3. obrigado JdB por nos brindar com estes momentos tão íntimos, tão belos, tão bem escritos. Por segundos, fechei os olhos e senti-me a pairar no céu.
    Boa semana
    Maf

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  4. O Amor e Carinho do Pai do Anjo, sentido e vertido aqui.

    Mas esse Anjo tem mais do que os outros Anjos, tem o deleite e a paz de acompanhar e animar este Amor imenso que derrama sempre, e que guiará ambos para o abraço e colo da eternidade.

    Ambos sabem que chegará o tempo de ser o que não aconteceu, e para sempre.

    ATM

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