L. entendia que um comboio era um conjunto mais ou menos
harmonioso de sistemas composto por rodas, motores, tirantes, equipamentos pneumáticos, engrenagens, componentes hidráulicos, relés, bobinas, rolamentos e mancais,
parafusos e porcas de diâmetro variado. Entendia ainda que se assemelhava ao corpo humano pelo facto
da panóplia de órgãos em andamento ter uma existência não vazia, isto é, não
desprovida de sentido. No homem é a locomoção, no comboio é a deslocação, ambas relacionadas com o movimento de gente.
Conceptualmente não haveria, por isso, diferença entre um fémur e um solenóide, porque
ambos servem o mesmo propósito - levar alguém do ponto A ao ponto B. Por outro lado, tanto no homem com no comboio há
uma noção do excesso, que pode ser sensorial ou espacial. No homem há o vómito,
que é o sintoma físico da intemperança. No comboio há uma porta por fechar devido ao excesso de corpos por metro quadrado. A porta que não se fecha
equivale, em conceito, à boca que se abre, porque ambas são a manifestação
do descomedimento.
L. entrou no comboio e sentiu a não conformidade. Estava demasiado próximo dela, uma desconhecida, e o comboio
não tinha conseguido exercer o alívio da sufocação. A porta não se fechara para
impedir a entrada, como por vezes a boca não se abria para permitir a saída. L.
estava colado a ela, a desconhecida, e sofreu o desconforto inicial. Fixou-lhe
tudo com um pormenor que poderia ser perturbador. Viu-lhe os olhos
assimétricos, o olho direito ligeiramente inclinado para cima na direcção do
exterior da face. Uma ligeiríssima diferença, só detectável com a contiguidade
demasiado chegada das caras. 2 graus? 3 graus? Qual a inclinação relativamente à linha
média horizontal que atravessava as duas órbitas oculares? Havia as
sobrancelhas, castanhas, talvez um pantone 126, mas que também poderia ser um
1265. A sobrancelha esquerda tinha uma pequena falha, uma clareira – 1 mm? -
onde não crescera nada. A testa era um
paralelogramo estreito, talvez com 4 cm de altura por 8 de largura. E o nariz?
Como era o nariz desta desconhecida, de quem ele estava tão próximo que quase a
poderia tocar se a língua dele, de L., fosse ligeiramente mais comprida do que a
média? Talvez 12 cm bastassem para que a ponta da sua língua e um dos seus 17
músculos lambessem a ponta do nariz dela. Um nariz que era equilibrado, bem
implantado no meio da cara, sem qualquer vestígio de formação vesiculosa
cutânea.
L. estava cada vez mais próximo, porque os
corpos nunca estão totalmente estáticos, além de que não há um conhecimento absoluto de como funcionam
as posições relativas de pessoas que estão imóveis. L. sempre sentira que,
mesmo quieto, se aproximava de um qualquer vizinho, ainda que este também estivesse
quieto, como se a distância vital entre os corpos fosse algo de incontrolável e desobediente à vontade das pessoas. E estava tão perto daquela desconhecida que sentiu nascer dentro de si a vontade
de a beijar. Aquela visão do detalhe, aquela proximidade, aquela análise
exaustiva das cores, dos ângulos, das pequenas falhas, dos equilíbrios, das
assimetrias estava a criar-lhe um desejo de lhe tocar nos lábios, pequenos em
termos de largura (4 cm?), pintados de um vermelho que seria um pantone 1788, embora
não estivesse certo. Era uma desconhecida, mas isso era irrelevante. O que
importava era a proximidade dos lábios, e um estudo pormenorizado de uma
face que lhe provocava um sentimento de atracção. Como poderia ele dominar este achegamento forçado causado por um comboio demasiado povoado e que não rejeitara o excesso humano?
L. ainda teve tempo de analisar as orelhas, os
brincos na forma de uma pérola encaixada numa flor que abre, os lobos excessivamente grandes
(2 cm parecia-lhe muito). Mas os lábios, os lábios!, e o apelo daquele vermelho
(pantone 1788 ou 1795?) daquela boca entreaberta, não sabia se em convite explícito se em dificuldade respiratória. Uma desconhecida... L. inclinou-se e cedeu ao impulso decorrente de uma análise
demasiado próxima. Tocou-lhe nos lábios com os seus próprios lábios e fez
pressão. Sentiu que os lábios da desconhecida cediam, amolecidos, húmidos,
receptivos, e que se entreabriam para o receber. E ele ali ficou, durante alguns segundos (10, 15?) num beijo humano, a mordiscar-lhe as partes carnudas, a identificar-lhe os contornos com a ponta da língua.
Sabes porque pareço uma desconhecida para ti? Porque não te percebo, não entendo nada do que tu dizes! Comboios e vómitos? E olha lá, com tanta igualdade conceptual, preferes ter a mão num fémur, como tens agora no meu, ou num solenóide?
JdB
Sabes porque pareço uma desconhecida para ti? Porque não te percebo, não entendo nada do que tu dizes! Comboios e vómitos? E olha lá, com tanta igualdade conceptual, preferes ter a mão num fémur, como tens agora no meu, ou num solenóide?
JdB
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ResponderEliminarADORO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderEliminarQuase a roçar o "que nojo" línguas, falhas, orelhas, narizes, é um momento maravilhoso e hilariante.
É sempre bom perceber que há pessoas que não conhecem a diferença entre um fémur carnudo e um solenóide pujante.Ela há momentos, sabe?