15 março 2013

Crónicas de um universitário tardio - O Detalhe


L. entendia que um comboio era um conjunto mais ou menos harmonioso de sistemas composto por rodas, motores, tirantes, equipamentos pneumáticos, engrenagens, componentes hidráulicos, relés, bobinas, rolamentos e mancais, parafusos e porcas de diâmetro variado. Entendia ainda que se assemelhava ao corpo humano pelo facto da panóplia de órgãos em andamento ter uma existência não vazia, isto é, não desprovida de sentido. No homem é a locomoção, no comboio é a deslocação, ambas relacionadas com o movimento de gente. Conceptualmente não haveria, por isso, diferença entre um fémur e um solenóide, porque ambos servem o mesmo propósito - levar alguém do ponto A ao ponto B. Por outro lado, tanto no homem com no comboio há uma noção do excesso, que pode ser sensorial ou espacial. No homem há o vómito, que é o sintoma físico da intemperança. No comboio há uma porta por fechar devido ao excesso de corpos por metro quadrado. A porta que não se fecha equivale, em conceito, à boca que se abre, porque ambas são a manifestação do descomedimento.

L. entrou no comboio e sentiu a não conformidade. Estava demasiado próximo dela, uma desconhecida, e o comboio não tinha conseguido exercer o alívio da sufocação. A porta não se fechara para impedir a entrada, como por vezes a boca não se abria para permitir a saída. L. estava colado a ela, a desconhecida, e sofreu o desconforto inicial. Fixou-lhe tudo com um pormenor que poderia ser perturbador. Viu-lhe os olhos assimétricos, o olho direito ligeiramente inclinado para cima na direcção do exterior da face. Uma ligeiríssima diferença, só detectável com a contiguidade demasiado chegada das caras. 2 graus? 3 graus? Qual a inclinação relativamente à linha média horizontal que atravessava as duas órbitas oculares? Havia as sobrancelhas, castanhas, talvez um pantone 126, mas que também poderia ser um 1265. A sobrancelha esquerda tinha uma pequena falha, uma clareira – 1 mm? - onde não crescera nada. A testa era um paralelogramo estreito, talvez com 4 cm de altura por 8 de largura. E o nariz? Como era o nariz desta desconhecida, de quem ele estava tão próximo que quase a poderia tocar se a língua dele, de L., fosse ligeiramente mais comprida do que a média? Talvez 12 cm bastassem para que a ponta da sua língua e um dos seus 17 músculos lambessem a ponta do nariz dela. Um nariz que era equilibrado, bem implantado no meio da cara, sem qualquer vestígio de formação vesiculosa cutânea.

L. estava cada vez mais próximo, porque os corpos nunca estão totalmente estáticos, além de que não há um conhecimento absoluto de como funcionam as posições relativas de pessoas que estão imóveis. L. sempre sentira que, mesmo quieto, se aproximava de um qualquer vizinho, ainda que este também estivesse quieto, como se a distância vital entre os corpos fosse algo de incontrolável e desobediente à vontade das pessoas. E estava tão perto daquela desconhecida que sentiu nascer dentro de si a vontade de a beijar. Aquela visão do detalhe, aquela proximidade, aquela análise exaustiva das cores, dos ângulos, das pequenas falhas, dos equilíbrios, das assimetrias estava a criar-lhe um desejo de lhe tocar nos lábios, pequenos em termos de largura (4 cm?), pintados de um vermelho que seria um pantone 1788, embora não estivesse certo. Era uma desconhecida, mas isso era irrelevante. O que importava era a proximidade dos lábios, e um estudo pormenorizado de uma face que lhe provocava um sentimento de atracção. Como poderia ele dominar este achegamento forçado causado por um comboio demasiado povoado e que não rejeitara o excesso humano?

L. ainda teve tempo de analisar as orelhas, os brincos na forma de uma pérola encaixada numa flor que abre, os lobos excessivamente grandes (2 cm parecia-lhe muito). Mas os lábios, os lábios!, e o apelo daquele vermelho (pantone 1788 ou 1795?) daquela boca entreaberta, não sabia se em convite explícito se em dificuldade respiratória. Uma desconhecida... L. inclinou-se e cedeu ao impulso decorrente de uma análise demasiado próxima. Tocou-lhe nos lábios com os seus próprios lábios e fez pressão. Sentiu que os lábios da desconhecida cediam, amolecidos, húmidos, receptivos, e que se entreabriam para o receber. E ele ali ficou, durante alguns segundos (10, 15?) num beijo humano, a mordiscar-lhe as partes carnudas, a identificar-lhe os contornos com a ponta da língua.

Sabes porque pareço uma desconhecida para ti? Porque não te percebo, não entendo nada do que tu dizes! Comboios e vómitos? E olha lá, com tanta igualdade conceptual, preferes ter a mão num fémur, como tens agora no meu, ou num solenóide?

JdB 

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  2. ADORO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Quase a roçar o "que nojo" línguas, falhas, orelhas, narizes, é um momento maravilhoso e hilariante.
    É sempre bom perceber que há pessoas que não conhecem a diferença entre um fémur carnudo e um solenóide pujante.Ela há momentos, sabe?

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