Há uns anos, num concurso que animou as opiniões públicas
europeias, cada país elegeu a personalidade que considerava mais marcante na história
pátria. A maioria dos eleitos foram heróis recentes, entre o final do século
XIX e o XX. À parte da curta memória que o concurso evidenciou, pondo a nu a
ignorância sobre o património histórico de cada nação, houve resultados
imprevistos e bem interessantes, que deram dores de cabeça aos actuais
governantes, apostados nessa ignorância das populações para obterem uma
proeminência que não vem da meritocracia mas da falta de concorrência. Isto é,
contavam ser favorecidos pela ausência das grandes figuras do passado, e nunca
em ser suplantados pelos seus arqui-rivais. Tiveram azar…
Por exemplo, em Portugal, o escrutínio popular elegeu
Salazar com uma vantagem muito destacada, seguindo-se Cunhal e em terceiro o
salvador dos judeus na Segunda Guerra, ao preço da sua carreira pessoal,
dramaticamente cerceada por Salazar – Aristides de Sousa Mendes.
Na Grã-Bretanha, o primeiro lugar coube ao político mais
excêntrico, aguerrido, radical, contraditório, acutilante, inventivo,
discernido (embora com algumas dissonâncias) e corajoso do século passado: Winston
Churchill (1874-1965). Diferentíssimo de qualquer outro líder do seu tempo. Aliás,
o rol de adjectivos – dos melhores, aos menos recomendáveis – seria
interminável, na tentativa de abarcar o vasto espectro da sua riqueza
psicológica. Como bem observava um dos seus múltiplos biógrafos (S.Haffner), Churchill
era um governante barroco, de visão e
actuação abrangentes, atípico para uma época crescentemente tecnocrata, moldada
segundos os consensos pragmáticos dos vários especialistas da política parcelar.
Pelo punho de um alemão radicado em Londres, desde 1938,
para fugir às perseguições nazis, chegou-nos uma biografia refrescante do
célebre político do charuto e do V da Vitória, em versão sucinta e bem
documentada. O livro(1) de Sebastian Haffner foi publicado em Portugal,
integrado na colecção do jornal Expresso (em 2011): «A minha vida deu um
livro», merecendo prefácio do historiador português Rui Ramos.
Note-se que há grandes obras sobre Churchill, a começar
pela sua autobiografia e continuando no trabalho notável do seu biógrafo oficial,
o famoso historiador britânico de ascendência judia – Martin Gilbert.
A versão abreviada de Haffner beneficia do facto de nos
dar uma boa radiografia da figura multifacetada do biografado, percorrendo os
momentos importantes da sua vida, com o cuidado cirúrgico de quem consegue concentrar-se
no essencial. Um esforço nada simples, que redunda numa edição de bolso,
despretensiosa e empolgante, fusionando, na perfeição, as originalidades inimitáveis
de Churchill com a catadupa de acontecimentos marcantes de que foi
contemporâneo e, não poucas vezes, protagonista. Mesmo nos longos anos de
interregno no poder, o seu activismo voluntarioso fê-lo deixar marcas indeléveis
no rumo da política britânica, com uma intensidade que só a distância cronológica
permite descortinar com nitidez. Nem mesmo a agudeza de percepção de Winston
soube antever totalmente o alcance da sua influência sobre o presente e sobre
as gerações vindouras.
Um dos traços mais curiosos da vida atribulada e grande,
a vários níveis, do herói mais popular da Grã-Bretanha é a sua educação: um rotundo
fracasso. E se os britânicos se esmeram por dar uma educação primorosa aos mais
novos, sobretudo aos futuros governantes! Nada faria prever que um aluno
medíocre e quase analfabeto, aos 17 anos, compensasse com um autodidatismo
incrivelmente talentoso e esforçado, o tempo perdido na escola e no liceu. A
ponto de se converter num dos escritores mais lidos da época (com obra
publicada aos 25 anos: «The River War:
An
Historical Account of the Reconquest of the Soudan», 1899), com
qualidade literária e vários outros méritos, que lhe valeram o Nobel da
Literatura, em 1953 (altura em que a Academia sueca era de uma exigência, que
deixou de se vislumbrar a partir do final dos anos 80). Uma proeza inimaginável
e dificilmente previsível para qualquer um dos seus professores, com motivos de
peso para o considerarem uma perfeita nulidade.
Inimaginável também que uma personalidade tão positiva e
enérgica arrastasse a enorme frustração de nunca ter sido reconhecido, ou
sequer apreciado, pelo ídolo da adolescência: o pai, Lord Randolf Churchill,
que morreu prematuramente aos 40 e poucos anos. Nem Winston (que não era falho
de imaginação) imaginava que iria ultrapassar, a passos de gigante, a fama política
alcançada pelo pai!
Polémico e paradoxal é o menos que se pode dizer de
Winston, a somar recordes em todas as áreas onde actuou: o único deputado
britânico que mudou, não uma, mas duas vezes de partido… e resistiu,
politicamente; o único deputado a ser violentamente apupado no parlamento, pela
defesa romântica da frágil posição do futuro rei Eduardo VIII, quando este se
apaixonou por uma estrangeira (americana) que já ia no segundo divórcio; o
único a prever, com todo o realismo, a ferocidade do nazismo e a demência
perigosa de Adolph Hitler; o único a diagnosticar, com genialidade mas nenhuma
utilidade (foi afastado do poder no início do conflito), logo em 1914, as novidades
e os desafios bélicos da I Guerra, gizando a melhor estratégia para o que
poderia ter sido uma vitória rápida do Império britânico; o precursor do tanque
de guerra, em 1914, denominando-o por navio
de terra; o Primeiro-Ministro que ascendeu ao cargo com mais idade – aos 65
anos – e numa época de muito mais rápido envelhecimento do que a actual; o
político com o discurso mais cativante, original, poético e idealista, onde a
promessa de «sangue, suor e lágrimas» foi apenas a ponta do iceberg; o único
jornalista com intervenção militar épica, em pleno palco de guerra (na África
do Sul), conseguindo o feito extraordinário de salvar sozinho um comboio
britânico sequestrado pelos revoltosos (boers), quebrando pontualmente a onda
vitoriosa dos adversários; etc.
Vale a pena relembrar algumas das tiradas superiores de Churchill, menos citadas,
e que são de uma sabedoria e beleza difíceis de igualar:
- (Aos ingleses, após a Batalha de Inglaterra, em 1940) «Vosso foi o coração de leão; a mim apenas
competiu a tarefa de rugir.»
- (A
animar as hostes, após revés) «It's only
at night that the stars shine.» (Só quando a noite
cai, se vislumbram as estrelas cintilantes no céu.)
- (Desencorajando o ajustes de contas contra os apoiantes
de Chamberlain, em 1940) «Se lançarmos uma disputa entre o passado e o
presente, descobriremos que perdemos o futuro.»
Churchill seria o que hoje denominamos por hiperdotado,
desinteressando-se olimpicamente pelo regime geral de educação, onde a maioria
é serenamente formatada. Nos padrões actuais, seria também um hiperactivo e um
workahoolic com produtividade astronómica. Até as rasteiras que lhe pregaram,
na política, tiveram em Winston uma única resposta (salvo uma ou duas infelizes
excepções): um trabalho irrepreensível e de excelência. Chega a ser cómico, por
exemplo, o ardil usado pelo Primeiro-Ministro Baldwin, em 1926, para o desviar (com
sucesso) do núcleo duro do poder, incumbindo-o de redigir um jornal do governo.
Escusado será dizer que o «British Gazette» alcançou tal sucesso editorial, que
rapidamente se tornou rentável, disparando
para uma tiragem de 2 milhões de exemplares, em apenas dez dias!
Ironicamente, arruinou a reputação política de Churchill, tal a superabundância
de intrigas e ataques verrinosos publicados no dito periódico, claramente num
estilo estranho à fleuma britânica, que, apesar de tudo, se deliciou a lê-lo! Aliás,
os artigos de Winston na imprensa diária eram dos mais lidos em todo o mundo, durante
a década de trinta, apesar de corresponder, exactamente, ao seu período de
maior afastamento dos cargos públicos. Ironia das ironias, terá sido esse trabalho
de bastidores junto da opinião
pública, sem qualquer reconhecimento visível, que favoreceu a sua ascensão ao
mais alto cargo do Estado inglês, em 1940, com mais do que idade para se retirar!
Se há pessoa que prova quanto o curso dos acontecimentos acaba
por ser surpreendente, até mesmo para o próprio, é Churchill.
Se há pessoa que prova quanto a atitude de vida se
sobrepõe às circunstâncias, mesmo às mais hostis, é Churchill.
Se há pessoa que prova quanto cada minuto merece ser
saboreado com empenho, é Churchill.
Por isso vale bem a pena conhecer, ou relembrar, o
tumulto de aventuras e desventuras que foram os seus contagiantes 90 anos de vivência
intensa. A sua biografia podia intitular-se Uma
Vida Para a História. Pensando bem, que outra coisa é a História, senão pessoas?
No fundo, cada ser humano faz parte integrante da memória da Humanidade, pois é
irrepetível, como Churchill mostra à evidência.
Maria Zarco
(a preparar o
próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
______________
(1) Haffner, Sebastian,
«Winston Churchill», Colecção A minha
vida deu um livro, Expresso, 2011 (edição original de 1967, Hamburg),
Prefácio de Rui Ramos.
A propósito do que escreveu "ao preço da sua carreira profissional dramaticamente cerceada por Salazar-Aristides de Sousa Mendes" sugiro-lhe que leia o livro do Embaixador Carlos Fernandes - O cônsul Aristides de Sousa Mendes, a Verdade e a Mentira.
ResponderEliminarSdB(I)
Muito obrigada pela sugestão de leitura, que seguirei com o maior gosto. MZ
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