19 novembro 2013

Duas últimas

O aforismo romano mens sana in corpore sano revela um desejo de consonância entre o corpo e a mente. Neste desejo está subjacente um equilíbrio entre aquilo que em nós é palpável e o que não é. Talvez possamos, por isso, ler esta frase como algo de intrinsecamente egoísta: o meu corpo está são se a minha mente estiver sã; ou, inversamente, a minha mente está sã se o meu corpo o estiver também.   

O que aconteceria se levássemos este aforismo a uma certa descentralização de nós próprios e o recitássemos de outra forma: o meu corpo está são se a tua mente estiver; ou, de uma forma talvez mais correcta, a minha mente está sã se o teu corpo estiver. A mudança de pronome possessivo - ou a conjugação de dois pronomes possessivos, meu/minha, teu/tua - abre uma perspectiva diferente, estende o próprio corpo para além dos nosso limites físicos. A nossa saúde mental ou física já não depende exclusivamente do nosso corpo/mente, mas do corpo/mente de outros. A um ideal individualista conseguiremos opor, com este novo fraseado, um ideal mais gregário?

Sejamos mais audazes e alarguemos este conceito a um universo (quase) ilimitado. Se entendermos que a condição de saúde do nosso corpo/mente está dependente da existência (aparentemente saudável) de algo que nos é extrínseco, conseguiremos então deduzir que nem tudo depende do que está dentro de nós. Logo, construímos relações de inseparabilidade óbvias que derivam de uma semântica livre: não consigo viver sem oxigénio; talvez mesmo não consigo viver sem ti. Ou ainda, não conseguiria viver sem os meus filhos, mas, também, ser-me-ia impossível viver sem os meus cachimbos ou sem a proximidade do mar. Esta condição de inseparabilidade estende-se em possibilidades imensas e permite que estabeleçamos famílias artificiais construídas por pessoas, famílias, lugares, coisas. De que não conseguiríamos abdicar? O que nos é imprescindível para viver? Que famílias artificias são as nossas?

***

Deixo-vos com dois fados, em cujas letras é forçoso atentar-se. Não chega ouvir, apreciar a voz ou a música. É preciso entender as palavras que são colocadas umas atrás das outras, como se a sequência certa fosse aquela, muito embora as combinações fossem quase infinitas.

JdB



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