Pedir
É um
verbo humaníssimo, este verbo pedir. Pedimos coisas diferentes e de formas
absolutamente variáveis. Quando nascemos, começamos por pedir aos gritos que
partam em nosso socorro, antes de termos as palavras. Quando aprendemos a
usá-las, ganhamos talvez maior tranquilidade no pedir, mas nem sempre. Pedimos
porque não nos bastamos a nós próprios. E isso, que seguramente é um elemento que
nos redime, não deixa de ser igualmente uma ferida. O léxico do pedir é
prolífero, mas também inconstante. Pedimos com simplicidade e com inúmeros
rodeios. Mantemo-nos fluentes ou gaguejamos, mergulhados numa insegurança que
nos tolhe.
Pedimos
oralmente, por escrito, por entreposta pessoa, de forma ostensiva ou subtil,
ou, até, com maior ou menor consciência de que um pedido está a ser formulado.
Há mesmo momentos da vida (e não são poucos) em que faríamos tudo para não ter
de pedir. Esta dificuldade nem sempre é má Precisamos de autonomia para
maturarmos o nosso caminho pessoal, e todas as dependências de que a vida se
tece só ganham em ser sacudidas e purificadas por um espírito de liberdade que
se afirma. Pedir pode tornar-se um obstáculo a aprendizagens que estão
perfeitamente ao nosso alcance. Mas o contrário também é verdade, pois
crescemos no reconhecimento de que sem os outros nós não somos. De entre todos
os pedidos, os que nos custam mais são os mais simples, aqueles imateriais, e
que se prendem com a arquitetura (ou arquitextura, como ensinou Derrída) das
relações: pedir amor, pedir desculpas, pedir presença, conversa, calor,
compaixão. Aí é tão fácil ficar enredado em engulhos, coisas não-ditas ou
mal-entendidas.
Penso
muitas vezes num pedinte que conheci em Roma. Era (e é) impossível não dar com
ele quando se visita a cidade. Eu estava sempre a esbarrar com uma das suas
passagens: à saída da universidade, da biblioteca, do cinema, no Campo das
Flores, em São Pedro, por todo o lado. De dia ou de noite. Um homem que andará
hoje pelos sessenta anos de idade, com um porte discreto, delicado até.
Abeira-se dos passantes com duas perguntas. «Fala italiano?» - atira primeiro.
E, qualquer que seja a resposta, dá o passo seguinte. Pegando cuidadosamente numa
moeda entre os dois dedos e colocando-a perto dos nossos olhos, roga: «Tem 100
liras?». Conheci-o assim, ainda antes do euro. Com a integração na moeda única,
ele também se ajustou, passando a pedir 10 cêntimos.
A
primeira vez que a sua interpelação nos é dirigida pensamos que se trata de
alguém que precisa de completar a quantia necessária para um bilhete de metro
ou para uma fatia de pizza. Depois de o encontrarmos centenas de vezes, ficamos
sem saber exatamente o que pensar. Assisti, porém, a uma cena que porventura
pode esclarecer parte do enigma.
Numa
rua, à volta do Panteão, estava sentado um outro mendigo. Melhor seria dizer
que estava prostrado. Com um vestuário andrajoso, um braço deformado por
caroços, um ar que trazia misturado tudo: dor e exclusão. À distância, vejo o
pedinte aproximar-se dele. E, para meu espanto, percebo que repete ao mendigo a
cantilena que faz a todos os outros, mostrando-lhe insistentemente uma moeda.
Talvez para afastá-lo, talvez vencido pela compaixão, vejo que o mendigo tira
do seu prato uma moeda que lhe entrega. E foi neste momento que a cena se
tornou inesquecível. O pedinte ajoelha-se ali diante de todos, agarra as mãos
do mendigo e beija-as repetidamente, turbado pela emoção. Penso que finalmente
o percebi. Ele não pedia moedas. Pedia um bem mais raro e vital: pedia o dom.
* José Tolentino Mendonça
In Expresso,
23.11.2013
Como já lhe referi por diversas vezes, o Padre Tolentino é para mim um ensaista rebuscado e confuso e lamento não conseguir atingir esta sua mensagem.
ResponderEliminarEu lido mal com o verbo pedir. Neste texto, trata-se de um acto de humildade, não se devendo dissociar da arquitextura (prefiro o conceito de Derridas, supondo a intersubjectividade e desconstrução das hierarquias) das relações. Concordo!
Pode ser um obstáculo à nossa autonomia e aprendizagem, concordo!,
logo o PEDIR pode ser uma rotina que se abraça à preguiça e comodismo, porque, e é bom que não nos esqueçamos, sempre que solicitamos os outros, estamos a aliviar a nossa pena.