Segue abaixo, para os que mantêm uma inexplicável persistência em ler-me, a minha segunda contribuição para o concurso de Escrita Criativa em que me inscrevi. De um 61º lugar ex aequo na primeira semana, passei para um decente 21º lugar, também ex aequo (entre 150 concorrentes), com este texto. O desafio era: escreva uma narrativa sobre o medo, em que uma das personagens se chame Andreia e tenha 35 anos.
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O meu nome é Andreia, e tenho
35 anos.
Para que precisamos dos olhos,
se o essencial se vê com o coração?
Porque não assumimos o tacto
como a extensão privilegiada da mente para identificar as coisas materiais e os
contornos humanos?
Porque não escutamos com
atenção, decifrando os ruídos que identificam os pássaros, as emoções audíveis,
os movimentos da terra e das pessoas?
Porque não usamos o olfacto
como o usam os animais que tudo identificam pelo cheiro, como se mais nada
fizesse falta para deambularem pelo mundo na sua felicidade sem fingimento nem
dissimulação?
O mundo é feito de excessos: dinheiro,
comida, prazeres carnais, obras de arte, amigos, livros, publicidade,
telenovelas, enganos da realidade, carros em circulação, níveis de
radioactividade, fotografias digitais. Dentro de nós são os sentidos e os seus
descomedimentos. Nada parece chegar para esta voragem colectora de bens e sentimentos.
Como conseguimos abarcar tudo
isto num cérebro que definha sem retorno, numa memória que se esgota como bem
precioso, numa alma cuja existência suscita dúvidas? Como arrumamos os cheiros,
as texturas e as formas, os sons da natureza e dos gatos, dos motores potentes
e das conversas? Como guardamos o contorno de umas costas ou de uma mão calejada
se não for de olhos fechados? O que fazemos com esta panóplia de sensações que
nos invade e ocupa os espaços livres de uma máquina envelhecida? Porque não
conseguimos fechar uma assoalhada do cérebro, viver num espaço diminuto,
alcançar tudo com uma mão aberta?
Cresci sem medo. Talvez um
destemor, uma indiferença aos perigos que espreitam em cada esquina, em cada
pessoa, em cada circunstância. Talvez uma ousadia no desafio à vida. ‘Uma
imprudência’, dizem-me. Talvez.
Toco, cheiro, oiço. Desenho
imagens, adivinho sinuosidades do outro, encosto os barulhos a quem os produz,
ligo os risos a uma boca bem desenhada, a uns dentes brancos com uma assimetria
elegante. Passo os dedos por um corpo esculpido de humores e cheiros. Sinto-lhe
o peito, as coxas musculadas, adivinho-lhe tudo.
Não tenho medo de nada. Não
receio voar, nadar na imensidão do oceano, correr na direcção do precipício, parar
um instante antes da queda.
O meu nome é Andreia, e tenho
35 anos. Cega de nascença, a técnica devolve-me hoje, quando o sol se puser no
fio do horizonte, a visão que nunca tive. Nada receio, nem sequer o meu
destemor. Só tenho medo da desilusão. Ou do excesso.
JdB
só tenho receio que deixe de escrever assim, só tenho medo de deixarmos de saber ler....
ResponderEliminarVolte sempre, porque esta escrita acalma os nossos pequenos medos.
ResponderEliminarMuito bom!
ResponderEliminarÉ bom vê-lo refinar a escrita.
Parabéns e não deixe de escrever nunca!
Beijinhos