09 dezembro 2013

Vai um gin do Peter’s?

Na contagem decrescente para o Natal, os tempos de crise têm a pequena vantagem de puxar menos pelo frenesim dos presentes e dos preparativos consumistas, dando-nos mais folga para saborear a magia da quadra, onde a solidariedade entra na ordem do dia.

No Porto, a Câmara lançou-se numa iniciativa bem original, abrindo o Museu Soares dos Reis para um encontro (a 6 de Dez.) onde os oradores foram os sem-abrigo. A ideia partiu da réplica de dois participantes, num Seminário realizado a 20 de Abril, sobre interajuda, em que sugeriram a uma das funcionárias municipais presentes que ouvisse os sem-abrigos, se queria intervenções realistas e compreensíveis!

A partir da queixa, indirecta, a Câmara resolveu levar o desafio a sério e organizar um evento que desse voz aos mais desfavorecidos. Curiosamente, estes preferiram focar-se na arte, e nem tanto no rol de reivindicações e protestos que, legitimamente, poderiam ter acumulado! Até nisso, deram uma grande lição ao país, onde tantos – com muito menos motivos – quase só sabem usar os microfones para reclamar e exigir financiamentos (do erário público, claro).

O principal Museu portuense era o local certo para reunir toda a cidade. O mote foi «Uma vida como a arte: existimos, somos pessoas». O convite foi distribuído pelos sem-abrigo, nos dias antes, oferecendo flores de papel a quem passava! Muito poético, corajoso e comovente, vindo de quem sobrevive a custo!

Seguindo o percurso interior que os 3 Tempos ensinaram ao forreta do velhinho Scrooge, na noite de Natal, também a humildade e a urgência em reavaliar a nossa vida entram na ordem do dia.

Desta vez, a lição chega-nos pelo sr. nespresso, George Clooney, no filme do mexicano Alfonso Cuarón –  «GRAVIDADE»(1).


Contracenando com Sandra Bullock, somos atirados para a estratosfera, mergulhando na escuridão silenciosa e avassaladora da galáxia. Operários de luxo, os dois astronautas-mecânicos de naves e sondas, entregam a sua vida (mesmo!) para concertar um equipamento com falhas técnicas chatas. O mais pequeno esforço para apertar um parafuso ou, simplesmente, respirar a milhares de kms da terra, vira uma façanha.

O realizador faz-nos acompanhar cada segundo de toda aquela acrobacia espacial, partilhando a tenacidade e bravura dos dois, que Clooney tenta aliviar com piadas de esplanada, mas sem perder o fito da sua vigilância exigentíssima. Tornando simples e, aparentemente, comezinha, a grandeza do seu cargo de sentinela, em local tão inóspito, George vela pela sobrevivência dos dois com o rigor de um militar, mas a pureza cândida das crianças que se contentam em viver intensamente o presente saboreando a vida, além da enorme humildade de quem se limita a cumprir a sua obrigação. Ainda que seja uma questão de vida ou de morte… Mas nada de poses melodramáticas ou sequer heróicas! Nenhuma bravata nos gestos mais radicais e magnânimos. Nenhuma voz dura ou punitiva, por as suas ordens não terem sido devidamente acatadas, com consequências trágicas. Nenhuma intervenção mais acalorada nas investidas titânicas para transmitir ânimo e gosto pela vida à pessoa que lhe estava confiada. Nenhum desabafo pesado, na hora derradeira, para além de meras observações sobre a paisagem soberba, embora letal, nas profundezas da via láctea, a uma altitude irrespirável.




Tudo prosaico e despojado, como se a missão fosse de somenos e ele até fosse um rapaz desengraçado, a quem fizessem falta olhos azúis e outros atributos que lhe permitissem distinguir-se no meio de uma multidão (e das grandes; nada abaixo da escala chinesa, s.f.f.)…

Em cenário de ficção científica, a história trata, afinal, da mais elementar, embora prioritária, das preocupações humanas: o sentido da existência e o lugar de cada um no universo afectivo, antes mesmo de o localizar na geografia do cosmos. Por isso, ninguém ali é suposto armar em herói ou extravasar a circunstância do comum dos mortais, valendo as personagens enquanto porta-vozes de qualquer um de nós. Daí o papel atribuído a Clooney, um habitué neste perfil das gentes mais anónimas do planeta, “apenas” ávido de passar boas dicas ao próximo, sobretudo por um testemunho magnânimo e modesto. Numa das tiradas transmitidas à recém estreada médica espacial, exasperada de lutar pela vida, consegue incutir-lhe fôlego para tentar sobreviver: «I get it, it's nice up here. You could just shut down all the systems, turn down all the lights, just close your eyes and tune out everyone. There's nobody up here that can hurt you. It's safe. What's the point of going on? What's the point of living? Your kid died, it doesn't get any rougher than that. It's still a matter of what you do now. If you decide to go then you just gotta get on with it. Sit back, enjoy the ride, you gotta plant both your feet on the ground and start living life. Hey, Ryan, it's time to go home.» Aliás, a presença de um par de vozes, naquele cenário de silêncio petrificante, resultou no melhor estímulo para a astronauta recusar o circuito de desespero a que tinha cedido e bater-se pelo regresso a casa. A chegada ao areal que se cola à pele de Bullock, depois de mergulhar no magnífico lago Powell, lembra o gosto especial da vida humana, testemunhada por um dos anjos, no filme soberbo de Wim Wenders – «Asas do Desejo».

Como assume o realizador de GRAVIDADE, em resposta às observações de um astrofísico americano sobre as pequenas incorrecções visuais do filme: «Tentámos ser tão precisos quanto podíamos, no âmbito da nossa ficção. Mas, no fundo, esta ficção é uma viagem emocional, mais do que qualquer outra coisa».



No Porto, os preparativos do Natal foram ainda mais longe, procurando chegar a todos, bem ao modo do convite que chegou aos párias da sociedade judaica, que pastoreavam junto a um povoado das franjas do Império Romano – Belém.
Em Lisboa, a Via da Alegria promete ajudar-nos a entrar no espírito da época, na tarde do Sábado, 21 de Dezembro, descendo do Príncipe Real (concentração às 15h45) para o Chiado (www.presepionacidade.org). 
Algures no espaço, George Clooney é inspirador, até mesmo por causa do desafio interior que o Natal nos lança.  

Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
GRAVITY
Título traduzido em Portugal:
GRAVIDADE

Realização:
Alfonson Cuarón (mexicano)
Argumento:
Alfonso Cuarón e Jonas Cuarón
Produzido por:
Warner Bros. Pictures
Director de Fotografia: 
Emannuel Lubezki
Banda sonora:
Steven Price (que colaborou no “Senhor dos Anéis”)
Duração:
91 min.
Ano:      
2013
País:
EUA

        Elenco:

Sandra Bullock  (astronaut-médica Ryan Stone)
George Clooney (astronauta Matt Kowaski)
Ed Harris   (posto de controle da Nasa, em voz-off) 
Orto Ignatiussen (voz de chinês interceptada no rádio de uma das naves)
Phaldut Sharma e Amy Warren (mais vozes apanhadas no rádio)   
Sasher Savage (voz do comandante da estação espacial russa)

Locais das filmagens:

Lago Powell, Arizona, abóbada celeste.

Site oficial:

http://www. /


Um dos 3 filmes mais vistos do ano.



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