O desafio da passada semana era: escreva a história que pode estar por detrás deste poema de Rui Nunes.
Segue também o texto com que concorri. Devo ao meu querido amigo gi o mote para a história e a criativa frase do epitáfio. Quanto à classificação, só a saberei hoje de noite / amanhã de manhã.
***
Explode:
as mãos traçam um som insuportável:
a história pára nesse gesto
mas recomeça um pouco mais à frente.
O que sobra de um corpo
é a silenciosa queda dos destroços.
O trigo escurece, as rêses comem a própria carne,
e os gafanhotos anunciam a manhã do ódio:
o desenho do tempo fica dia a dia mais nítido.
os vidros resguardam-no do clamor
e nos vasos de begónias floresce o néon.
Sentado à secretária, o homem risca uma palavra,
leva as mãos aos lábios,
medita,
e reescreve a morte.
como se diz este último resíduo,
estes corpos que irradiam morte,
o anónimo de uma luz insuportável?
como se diz uma palavra
meticulosamente destruída,
estes sons desavindos?
ou uma criança que não sabe correr?
a eternidade é a bebedeira dos desesperados:
viagem rápida, dia em estilhas
que acaba em três ou quatro gotas
no vidro da janela:
insectos esborrachados contra um pára-brisas.
é preciso decifrar os escombros.
***
Um funcionário.
Senta-se à secretária, liga o
computador, ajeita a inclinação ergonómica do ecrã que grita obsolescência.
Abre a gaveta, tira o agrafador que alinha junto ao cinzeiro inútil, coloca-o entre
uma resma de papel de baixa gramagem e as fotografias dos pais e da filha em
formato passe. Compõe com paralelismo zeloso os processos que aguardam decisão.
Afia o lápis de bico já rombo. Prazos, comprovativos, selo branco, requerimentos,
carimbo, senhas do balcão número três.
Sim sôtora, com certeza sôtora. A certidão? Entrego já, sôtora.
Olha para o outono que se deita
sobre a cidade, sobre a repartição, sobre a vida. As flores do vaso,
amarelecidas pela respiração humana e pelo desinteresse, suscitam nostalgias de
momentos que morreram. Os pássaros, cujo piar a vida agreste transformou em
ruído, perderam encantos, são fonte de imundície, dentes inexistentes a corroer
as cantarias do património. A filha emigrada, os pais entrevados num lar, a
neta que tarda em nascer e que o beijará em sotaque estrangeiro. Declarações,
coimas, atrasos, execuções fiscais, sobrescritos desactualizados a engrossar a
fileira do papel, os ponteiros do relógio numa lentidão de corredor da morte, a
estridência das colegas a tomar pé na novela da véspera.
Os objectivos para este ano, sôtora? Talvez sobreviver...
Analisa processos com uma repetição
de tempos modernos, suporta um utente que já se chamou cidadão e que um dia se
chamará cliente, imobiliza o pensamento na courela da aldeia, na sopa com
couves caseiras, no lume a crepitar, nos grilos que acompanham poemas redigidos
sem métrica nem pretensão.
Esvai-se-lhe tudo, como se a
monotonia dos dias que correm fosse um manto preto e espesso que se deita sobre
a alma dos que aspiram a mais, afogando os desejos, engolindo as ilusões,
matando os sonhos. A vida, na sua aparente e falsa lentidão, é um carro veloz
em cujo vidro se esmaga tudo: mosquitos, gafanhotos, anseios, miasmas, folhagem
solta, saudades.
Num jornal velho, por baixo da
fotografia desfocada de um homem de chapéu, lê estranhamente o seu próprio
epitáfio:
a usura do tempo atenuada pela
planura da civil rotina, como um freio domando dentes tristes como leões
enjaulados.
O
lápis volta a estar rombo, mas só o afiará de manhã, antes das senhas do balcão
número três e depois do alinhamento do agrafador. As fotografias em formato
passe permanecem, porque há a imaterialidade dos afectos.
Até amanhã, sôtora. Estimo as suas melhoras.