20 fevereiro 2014

Dos processos químicos internos

Storm, 9.02.14 (fotografia de JMAC, o homem de Azeitão)


Há duas semanas escrevi neste estabelecimento sobre detalhes, tendo referido os conceitos de studium e punctum desenvolvidos por Roland Barthes (in A Câmara Clara). 3ªfeira, ao tomar a decisão editorial de postar um Largo da Boa-Hora, embateu-me na testa aquele texto específico, aqui publicado há mais de cinco anos. Ontem, na minha ronda habitual de leituras matutinas, aprendi o conceito de "bem relacional": tipo de bens nos quais é a relação entre as pessoas que constitui o bem. Num repente que nada tem de lógico, mas de emocional, quis acreditar que estas três referências estavam interligadas, isto é, havia um alinhamento cósmico, uma espécie de fio invisível que tecia uma urdidura temática que só eu via.

Foquemo-nos. Aquilo que numa sala, numa pessoa, num quadro, num verso, num jantar ou num livro nos prende uma atenção instantânea é, estou em crer, involuntário. Depende de quem somos e da importância que damos às coisas; depende dos nossos gostos, ou mesmo da nossa genética. Mas é involuntário no sentido de não ser fruto de um acto deliberado, consciente e pensado. Olho para um grupo de amigos num restaurante e fixo o pormenor x, enquanto alguém ao meu lado atenta no pormenor y. A incógnita depende de quê? Do que é imediatista dentro de nós, mesmo que percebamos, à posteriori, a verdadeira e inquestionável importância do pormenor z.

O apego pelo detalhe é uma faca de dois gumes. Em mim  - como em muitos de nós, estou certo - vivem o deus e o diabo que agarram os detalhes pela mão ou pelo pescoço. É por isso que numa sala bonita, com rembrandts e pratas, me salta sempre à vista uma nódoa quase imperceptível ou o desalinhamento de dois bibelots; numas vezes vejo desacerto e falta de atenção, noutras vislumbro um charme discreto ou uma indiferença elegante. Mas nem sempre vejo os quadros. Depende de quê? De muitos factores, e por vezes de processos químicos internos que dificilmente saberei explicar.

Entramos num restaurante, numa pastelaria ou num estabelecimento que vende retrós. Assistimos a um concerto de música clássica ou a um programa de televisão que paga para as pessoas rirem. Passamos num quiosque para comprar uma revista ou sentamo-nos numa esplanada ao fim do dia. O que vemos e a que damos atenção? À qualidade do serviço, ao preço, à perfeição da execução, ao encanto da obra ou ao nível de entretenimento. Acontece-me não ouvir a peça musical, não prestar atenção ao jornalista, não querer saber do pôr do sol. Fixo a curva das costas da violinista, detenho-me no nariz da senhora que bate palmas na primeira fila dos estúdios, lembro a aliança do empregado que me traz uma cerveja gelada. A minha atenção desvia-se para a secundariedade do cenário, porque o meu punctum é aquele.

O que faço com este desvio da atenção? Nada de muito relevante para os outros. Mas acontece-me imaginar histórias aos personagens subalternos, adivinhar-lhes pequenos dramas e alegrias, rotinas desinteressantes, fragilidades emocionais, necessidades financeiras. Talvez, imperceptivelmente, lhes dê a dimensão humana que de facto têm e, nesse sentido, desvalorizo a cerveja que não tinha espuma, o jornalista que grita histericamente ou a violinista que esteve menos bem. Entre nós estabelece-se uma ligação que só existe dentro de mim, pelo que a bebida, o talk-show ou o concerto adquirem o estatuto de bem relacional. E com isso, diz-me a ingenuidade, afastámo-nos um micrómetro da indiferença. Mesmo que seja devido a um processo químico interno que dificilmente saberei explicar. 

JdB  

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