17 fevereiro 2014

Vai um gin do Peter’s?

Para hoje, vai um tema difícil. Daqueles que, quando menos se espera, invadem o nosso presente. Nada de surreal. Antes, bem concreto ao longo da história, por muito que se ignore uma realidade tão forte e marcante como a morte. Arrisco o tema, porque mesmo a morte pode ter uma perspectiva mais luminosa, quando alguém parte em paz. No caso mais recente que testemunhei, ainda teve o mérito acrescido de ter “apenas” 31 anos. Aquela paz parece ter aliviado um pouco o mistério doloroso da morte, a colidir descaradamente com um dos maiores apelos do coração humano: a vida. Claro que deixou uma saudade imensa. Mas quando se parte plenamente conciliado com a vida, sentimos que se estará mais preparado para sair do tempo e mergulhar na eternidade. De certo modo, intuímos aquilo que Saramago verbalizou assim: «Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.» No fundo, embora pareça contraditório, vida e morte estão mais entrelaçadas e são mais convergentes do que é comum admitir-se.

Naturalmente que o desafio continua a ser colossal para quem fica, impondo-se-nos uma nova distância física e uma possibilidade de proximidade espiritual, que nos são desconfortabilíssimas. Até pela estranheza.

Vem isto a propósito de uma catadupa de partidas recentes, algumas bem duras, várias de gente mais nova, repentinas, a deixarem vazios que não sabemos preencher. Em concreto, a mais recente, revelou um lado positivo (apesar de tudo), que poderá ajudar-nos a reconciliar com uma das horas mais difíceis da humanidade.  

Assim aconteceu, na madrugada da Segunda passada, quando um rapaz de 31 anos já não acordou para viver aquele dia invernoso, de céu carregado e rajadas de vento contínuas. Curiosamente, o choque da notícia ficou algo atenuado, ou melhor, impregnado de uma onda de bondade, que era a imagem de marca do Luís. Como se tivesse demorado a sua partida, para nos preparar (ele estava pronto!) para o adeus. Parecerá inacreditável a quem não tenha vivido uma experiência semelhante, pois situa-se e situa-nos numa esfera bem diferente da materialidade visível, que marca o nosso dia-a-dia. O testemunho de confiança de tantos, na sua família, também terá acentuado a nota de paz face àquela morte súbita, que arrasta sempre uma dor gigantesca. 

Numa das Igrejas do Chiado, onde uma multidão – sobretudo de miúdos –  incrivelmente serena veio rezar em redor, por e com o Luís (bem sei como é esquisito, mas foi palpável), 3 dias a fio, transbordava para a rua, em enorme desconforto, sob a chuva irritante e ininterrupta. Era inexplicável o silêncio manso e, diria mesmo, carinhoso que nos envolveu. Longas horas que puderam ser benignas, apesar da saudade. Por isso, valerá a pena partilhar uns traços mínimos do perfil deste pequeno-grande sábio, com que tantos tiveram a sorte de se cruzar.


Animadíssimo por natureza e com óptima voz, era o protótipo do compincha, adorando cantar com os amigos. Percebe-se que o gosto pela polifonia contagiou todos os campos da sua vida:



Escreveu a mãe dele(1), há duas décadas, antecipando o que aqui sentimos: que o Luís foi educado para a bondade, tendo-a interiorizado em pleno e vivido com especial mansidão, numa mistura muito feliz. Talvez isso o tenha tornado inesquecível:

«(…) quando penso no que quero para eles (meus filhos), o que quero que sejam e consigam na vida, mais me convenço de que é esta a coisa tão simples, tão metafísica e tão-sem-graça, que é… que sejam bons. É uma virtude chata, sem graça, sem heroísmo, sem rasgos geniais, sem primeiros prémios, sem glória… mas apesar de tudo, para que ‘o melhor do mundo sejam as crianças’ penso que é para a bondade que elas têm de ser educadas

Escreveu, em Novembro de 2012, o próprio, com a fé simples e bem disposta que o caracterizava: «Durante muito tempo esperei pelos sinais do Senhor para lhe dar o meu sim. Estava totalmente errado! Do sim que digo a Deus diariamente é que os sinais se começam a tornar perceptíveis, visíveis no dia-a-dia. Mais do que nunca, estou certo que ‘Aquele que começou em mim tão boa obra há-de levá-la a bom termo até ao dia de Cristo Jesus’» (Nov.2012)

Bem se aplica ao Luís um pensamento lindo de Saramago: «A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)  Versão integral do artigo, publicado na revista PAIS & FILHOS, no final dos anos oitenta. O Luís era um dos gémeos referidos no texto:



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