Agradecer o que não nos dão
O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos
faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso
esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo,
contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um
laborioso e solitário processo. Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas
vidas são um recetáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a
própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de
que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se tivéssemos de fazer a
listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos
seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como
sendo a sua verdade: «sou uma obra dos outros». Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá
depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos,
boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de
vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós,
iluminando-nos, fundando-nos na confiança. Esse movimento, sabemo-lo bem, não
tem preço, nem se compra em parte alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência
indelével faz-se sentir a vida inteira. O seu lugar não consegue ser
preenchido, mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o tipo
com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa espécie de fala
geológica que nos morde.
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância
do que não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que
confidenciou: «Gosto de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é sempre tanto
que nem tenho palavras para descrever. Sinto, contudo, que lhe tenho de
agradecer igualmente o que Ele não me dá, as coisas que seriam boas e que eu
não tive, o que até pedi e desejei muito, mas não encontrei. O facto de não me
ter sido dado obrigou-me a descobrir forças que não sabia que tinha e, de certa
maneira, permitiu-se ser eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação
radical da nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é
propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não
agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece que a
nossa prece permanece incompleta. Podemos facilmente continuar pela vida dentro
a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a compararmo-nos e a
considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza daquilo que em cada estação
não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a
oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um
caminho de aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim que numa das horas
mais sombrias do século XX; desde o interior de um campo de concentração, a
escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais
admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou
escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza,
não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do
homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela
desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia
para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem
está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho
exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.»
José
Tolentino Mendonça
In Expresso,
18.4.2014
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