28 abril 2014

Vai um gin do Peter’s?

O documentário sobre o domínio dos Khmer Rouge era um dos favoritos ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano. A realização ousada e interpelativa, assinada por um documentarista cambojano – Rithy Panh – insinua no próprio título o traço mais diferenciador de Pol Pot relativamente aos muitos tiranetes de que há memória: «A IMAGEM QUE FALTA»(1). De facto, é gritante a ausência de registos do grande líder, pouco dado ao tipo de egocentrismo exibicionista que sobressai no comportamento dos ditadores. Possivelmente, por ter a noção do mal infligido, soube apagar os vestígios da responsabilidade que teve no genocídio monstruoso cometido sob a sua batuta. Em múltiplos aspectos, Pol Pot é único, resultando mais desumano por ser incompreensível para os padrões humanos, inclusive os malignos.


Pol Pot numa das poucas fotografias

Gozando da autoridade de provir de uma vítima directa dos Khmer Rouge, a película procura conferir imagem ao texto incisivo que corre em off, onde assenta o húmus do filme. Digladia-se aqui palavra contra palavra, numa guerra aberta entre pontos de vista do passado. De um lado, um porta-voz da população aterrorizada, do outro, a máquina de propaganda do Partido, que produziu as pouquíssimas peças documentais alusivas ao período em que dominaram o Camboja, de 17 de Abril de 1975 a Janeiro de 1979.

O simples facto de adoptar um formato documental, sem a presença de actores, confirma a intenção explícita de se aproximar do registo histórico possível, defrontando-se com o vazio de informação de época, à parte do testemunho de um sobrevivente. Um desafio homérico, onde se procura fazer luz sobre aquele período, praticamente indocumentado, após a hábil erradicação da sua memória. Porque os algozes tiveram a noção de que era imperioso não deixar rasto, somando mais um crime.   

Os breves momentos de presenças humanas cingem-se a excertos de filmes de propaganda explícita – com cenas bucólicas de multidões na azáfama da lavoura, escoltadas por crianças com os célebres lenços aos quadrados brancos e encarnados, que destoam das estatísticas da mortandade de um povo, em tempo recorde: 2 milhões de mortos em 4 anos.   

O documentário dentro do documentário

Para colmatar a falta de rostos, Panh avança com uma multidão de bonecos de barro, moldados na massa dos seres humanos, segundo o Génesis, que ilustram as situações descritas – daquelas incómodas para (seriam sempre censuradas por) um regime que se auto-proclamou expressão acabada da felicidade universal. Muito ilustrativo enquanto reconstituição daqueles anos, a partir de um olhar pessoal, de modo ostensivamente simbólico e simplificado. Conforme observou o crítico de cinema João Lopes, no Festival de Cannes: «raras vezes se terá visto um filme que, através de matérias tão candidamente artificiosas, consiga gerar um tão intenso e perturbante efeito de verdade

Segundo o realizador: «(Foi) um homicídio em massa que não deixou imagens. Eu estava à procura da ‘imagem que falta’. No entanto, ela existe sobretudo na minha cabeça. Pedi a um escultor para me fazer um pequeno homem utilizando a terra como material. Quando vi nascer aquela personagem a partir do barro soube que essa ‘imagem que falta’ estava ali. Foi surgindo o universo terrível desses anos. Fiquei perturbado ao ver a vida brotar da mesma terra onde repousam os mortos


O barro modelado é o que resta a Panh para desmontar a máquina propagandística de Pol Pot, numa contra-ofensiva para a batalha conceptual onde se esgrimem os conceitos através dos quais captamos e atribuímos significado ao que nos rodeia, uma vez que são cruciais para a nossa relação com a verdade, conforme alertava Gandhi, George Orwell e tantos outros. A guerra de mentalidades é, afinal, a prioridade das militâncias ideológicas de qualquer totalitarismo, pois a percepção da realidade não pode continuar a ser um acto espontâneo e individual, devendo antes conformar-se ao modelo pré-definido pelas autoridades. Prescrevem-se novos critérios de leitura dos factos, acreditando-se ser possível forjar a verdade pela força das armas. A fronteira entre noções antónimas – como facto versus fantasia, verdade versus mentira – esbatem-se, até porque se esvaziam de sentido. Tudo fica raso, como se a humanidade tivesse acabado de despontar no planeta. Para o cumprimento de tal sonho e segundo o relato de um sobrevivente, assiste-se à reeducação do povo, recuando-se a um estádio civilizacional considerado mais puro, exclusivamente rural. Traduzido para o concreto: significou que uma população de 6 milhões se viu reduzida a uma inteligência, uma vontade, uma memória e um discurso autorizado – o do líder. Aliás, o ano de tomada do poder, em 1975, é rebaptizado Ano Zero, supondo-se que o chefe podia pontificar sobre o tempo e reinventar a história.


Por arrasto, entra-se numa cruzada de despersonalização do indivíduo, a fim de domar e uniformizar a colectividade. Urge reduzir todos a peças da mega-engrenagem do poder. O efeito colateral é a robotização do ser humano, instrumentalizado pelo poder. Exige-se obediência cega. Pensar torna-se um luxo perigoso, pois qualquer desvio ao ideário do chefe equivale a sabotagem. Naturalmente que a diversidade individual se torna um escolho quando se visa funcionar em uníssono, resvalando-se para áreas que violentam a identidade humana, no espaço único da sua especificidade, de que as impressões digitais são a expressão mais ínfima.

No estilo híbrido do filme, a palavra ocupa o primeiro-plano, ora fluindo em mensagens semelhantes a trechos de um diário sobre o dia-a-dia de um povo escravizado, ora dissertando poeticamente sobre a ideologia fundacional do regime, em denúncia frontal do que afirma terem sido anos de inferno para a esmagadora maioria. Cabe à imagem complementar o conteúdo verbal. Uma originalidade também explicável pela subtileza deste povo e pela educação francófona dos cambojanos, ex-parcela da Indochina.

Revela-se uma obra algo bizarra «A IMAGEM QUE FALTA», no seu afã de dar substância a uma perspectiva individual, que contraria a versão dos Khmer Rouge. Mas quando as provas escasseiam e as poucas que restam desmentem afrontosamente os dados estatísticos, mais tarde reconhecidos internacionalmente, o que sobra para mostrar? Como ser credível? Como superar o buraco negro nos arquivos de época?
Como ir além do depoimento singular para se ser legítimo porta-voz dos milhões de sacrificados?
Como evitar a tentação de facciosismo (agora, de sinal contrário), de visão unilateral da história, nesta frágil guerra entre pontos de vista?
Talvez os poucos dados conhecidos daquele período reforcem as críticas das vítimas:
- O facto de a guarda de elite ter sido confiada a crianças e adolescentes, joguetes fáceis de autoridades sanguinárias, revelou-se uma opção especialmente perversa, pois a imaturidade dos soldados menores favoreceu os níveis de sadismo indizíveis usados contra a população indiscriminadamente, familiares incluídos.
   Note-se que a generalidade dos regimes comunistas incentivou os filhos a serem os delatores dos pais e irmãos, visando aniquilar a célula afectiva mais estruturante do ser humano na sociedade – a família.


Por ordem do líder, as crianças eram treinadas em jogos macabros
para se habituarem a torturar e a matar com a máxima barbárie.
Nas valas comuns, muitos foram enterrados vivos, depois de espancados com objectos rudimentares: foices, martelos, garfos, facas grossas, alicates, serrotes toscos, tacos de ferro, etc. Ainda hoje, as paredes da célebre prisão de Phnom Penh «S-21», montada no edifício de uma escola, continua com manchas de sangue, do chão ao tecto.   

- O massacre da população atingiu cifras obscenas. A vaga de fome evitável tornou o regime difícil de tolerável no seio da comunidade internacional.
- O êxodo forçado das cidades para o campo, deixando um rasto de morte e devastação nos pólos urbanos, geraram indignação mesmo noutros países de matriz maoísta e soviética, q.b. indignados com o calibre da desumanização gratuita perpetrada por Pol Pot, que nutria um ódio de estimação pelos vietnamitas.
   Cansado das escaramuças nas fronteiras, no final de 1978, o Vietname de Ho Chi Minh iniciou a invasão do seu vizinho comunista, aliviando o terror instaurado pelos Khmer Rouge. A ponto de o invasor estrangeiro ter sido aclamado publicamente pelo povo cambojano, como libertador.  
- A desindustrialização acelerada da sociedade, destruição da moeda e das escolas, expropriações e eliminação da propriedade privada para forçar o retorno a um estádio alegadamente puro, tomou proporções dantescas. Assassínios em massa dos instruídos (reconheciam-nos pelo bom estado das mãos, poupadas aos calos do trabalho manual), para além de todos os que são sempre diabolizados pelas ditaduras –opositores políticos, marginais, improdutivos como os idosos, doentes e outras minorias mais alternativas juncaram os campos de sangue inocente. A partir de 1978, a perseguição virou-se também contra os sequazes do regime, viciados em purgas homicidas.
   Nunca uma prisão tinha assumido as dimensões de um país inteiro, embora a vastidão territorial de uma Rússia ou de uma China não permitam um sequestro totalitarista tão bem orquestrado como o que vitimou o Camboja. 
- O encerramento do país a todos os observadores e organizações externas isolou-o em excesso, suscitando suspeitas de tiques sadomasoquistas e demenciais no regime. Temendo o pior pela população indefesa, o mundo aplaudiu a ingerência directa do Vietname, destituindo Pol Pot.

Dados adicionais sobre este ditador: a acrescentar às inúmeras facetas estranhas da voz de comando dos Khmer Rouge, sobreviveu mais 2 décadas depois de ter sido deposto, refugiando-se no Norte, onde se entreteve em agitações guerrilheiras, secundado pelo grupúsculo revolucionário que formou. Chegou a ser levado a julgamento pelos ex-seguidores, mas consideraram haver falta de provas irrefutáveis para o culparem pela chacina de um terço da população, nos anos 70. Acabou por ser condenado como Inimigo Público, morrendo de morte natural a 15 de Abril de 1998. Nos antípodas dos tiranos comuns, geriu com mestria uma forma encapotada de culto de personalidade, não permitindo que a sua assinatura figurasse em quase nada (não por falta de estudos ou algum assomo de humildade; recorde-se que era filho de um grande agricultor e frequentara a universidade, em Paris!), além de escassearem as imagens. A obsessão em dissimular a sua participação activa nos 4 anos de totalitarismo extremo, deixam-nos o desconforto de que nunca terá estado iludido sobre a bondade da sua doutrina, apesar de a ter mandado aplicar à risca. Desengane-se quem o achasse motivado por um idealismo irrealista. Enigmático, ter querido mudar ferozmente o curso dos acontecimentos, revolucionar todo o tecido social, sem deixar o nome gravado nas incontáveis iniciativas do novo regime, que é justamente o troféu preferido dos déspotas! Um distanciamento duplamente pérfido, parecendo confirmar a tese de que apenas o ódio puro o animava! Dizem que padecia ainda de um grau de racismo psicótico, mitificando a etnia Khmer, cuja capital imperial foi edificada na cidadela dos magníficos templos de Angkor, durante a Idade Média. Mesmo no mal, afastou-se imenso do comum dos mortais.     

No documentário, pressentimos que Panh se sente desconfortável, não apenas por reacordar um passado doloroso ou rever a sombra espessa do mal que assolou o seu país, mas pela cedência de tantos e a passividade de quase todos! É sempre o silêncio da maioria que dói e nos faz desconfiar do ser humano. Interroga-se, no final, sobre a inexistência de oposição, apesar de perceber que o povo estivera assoberbado no mero desafio da sobrevivência. Como ele próprio. Será que lhe faltou coragem para fazer contra-vapor, na altura? Falhou nalguma atitude? Continuar vivo valeu o preço do silêncio?

Ensaiando uma resposta simbólica à típica colecção de dúvidas que assaltam os sobreviventes de situações limite (os dos Campos de Concentração da II Guerra foram pródigos a testemunhar este mal-estar), a voz off diz-nos que um sorriso, um certo olhar foram os gestos possíveis e corajosos das vítimas de tanta crueldade. Defende que muitos emitiram estes sinais positivos, de valor incalculável, precisamente pelas circunstâncias desesperantes em que ocorreram, reanimando uns e outros. Ainda que minúsculas, são sempre preciosas as pequenas luzes que se atrevem a acender na escuridão. Sim, faltam provas materiais. Mas não faltou lealdade, nalguns, com risco de vida.  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA do filme documental:


Título original:
L’IMAGE MANQUANT
Título traduzido em Portugal:
A IMAGEM QUE FALTA
Realização:
Rithy Panh
Argumento:
Christophe Bataille e Rithy Panh
Produzido por:
Catherine Dussart
Banda Sonora:
Marc Marder
Duração:
92 min.
Ano:      
2013
País:
Cambodja e França
Escultor das figuras de barro:
Sarith Mang
        Elenco:

Randal Douc (narrador )
Local das filmagens:

Em estúdio, a maioria.

No Cambodja, de filmes de propaganda

Prémio em Cannes na categoria Un Certain Regard;
Candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição de 2014.


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