Toronto, Outubro de 2014 |
Um destes dias, uma esplanada da zona, um fim de tarde ameno e uma companhia aprazível. Ao meu lado, em mesa demasiado próxima, duas pessoas conversam sem preocupações de sigilo ou pudor. É impossível não escutar o que dizem, o que respondem. Talvez mesmo o que pensam, se bem que não tenha a certeza.
Fulano (ou seria fulana?) diz para beltrano (entre parênteses igual ao prévio): sabes, juntamente com este e aquele (ou esta e aquela) és a pessoa que conheço que vive com maior serenidade. Nada parece afectar-te muito. Beltrano percebe-se que sorri, encolhe ligeiramente os ombros e balbucia o que parecem ser modéstias e fórmulas não testadas cientificamente. Mas o tema está lançado: a serenidade.
Agarremos cinco palavras que no fundo são quatro: serenidade, desgostos, inquietação, vidas fagueiras. Busquemos os livros de matemática e falemos de cálculo combinatório: arranjos, permutações e combinações. Encontramos tudo, quase como se tendesse para infinito: gente com desgostos e inquieta, gente com desgostos e serena, gente fagueira assim e assado. O que distingue uns dos outros? Agarremos nas vidas difíceis: o que está por trás dos que serenam e o que está por trás dos que se inquietam? É o trabalho feito interiormente - a fé, a confiança, a escuta própria e dos outros - ou a ausência disto ou de coisas semelhantes? Podemos falar, como dizia o interlocutor da mesa do lado, de uma química interior? Quem não consegue e se queda numa inquietação permanente tem falta de jeito, de vontade - ou falta-lhe uma química interior, uma enzima, um metal, um ião positivo?
Falar no trabalho interior (e encurto propositadamente) é condecorar o agente, apondo por baixo da medalha: por ter-se excedido no cumprimento do dever. Um excedeu-se, e serenou, o outro não o conseguiu e vive em sobressalto. E se é uma enzima (encurto e etc.)? Se é um gás raro que habita uns e não outros? Juntamos uma injustiça à injustiça da vida? O que distingue, na realidade, uns e outros? Há pessoas virtualmente incapazes - sem recurso a medicamentos - de atingirem a serenidade? É o feitio?
Ainda quis ouvir a conclusão da mesa ao lado mas já não consegui, que a conversa mudou para o sporting, talvez. Ou seria a escola dos miúdos?
***
Ontem, por motivos que se prendem com o dia de hoje, surgiu a expressão nostalgia em aniversariar. Se acreditarmos que, como dizia Vitor Hugo, nostalgia é a felicidade de estar triste, vou ter de pensar se a frase acima é verdade.
No final de Agosto de 2008, depois de uma noite memorável no Pointe (Harare, Zimbabwe) para uma sessão de Karaoke, escrevi: a alegria pode ser um túnel todo iluminado. É injusto que se veja ao longe um brilho que se extinguiu, como se algo nos dissesse que todo o gozo tem uma sombra de nostalgia. Talvez haja aqui um pouco de resposta, sei lá eu...
Hoje escrevo para quem sabe que eu sei que sabe que eu sei. É o mínimo que posso fazer, considerando tudo o que lhe devo. É dia 30 de Outubro, e 1958 foi uma colheita muito boa.
JdB
Lido, um bom presente nestas memórias. Agradecido, talvez até comovido.
ResponderEliminarSerenidade e inquietação, serão mesmo extremos de um contínuo?
ResponderEliminarSerá que os serenos conseguem vidas fagueiras e os inquietos não?
Gostei muito do seu texto e da doçura e mansidão das suas reflexões.
Maria contemplativa, escuta a palavra do Senhor, Marta inquieta e instrumental, trata da matéria. A serenidade de uma é alimentada pela inquietação de Jesus (que revolucionou o mundo) e pela instrumentalidade de Marta que cria as condições de conforto para que Marta pudesse ouvir. Faz sentido?
No fundo Churchil, um inquieto controlado pela imobilidade fisica militante, construiu um belíssimo exército de Martas e Marias que o tornaram verdadeiramente eficaz.
Quando for grande quero ser assim.
Mesmo não sabendo que você sabe que eu seu que você sabe, gostei muito deste texto, obrigada!
ResponderEliminarBeijinhos,