05 dezembro 2014

Largo da Boa-Hora (republicado)

Texto publicado originalmente em 4 de Fevereiro de 2009.

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Imagino cada um de nós como um rio. Começamos em recôndita nascente, como um pequenino e titubeante fio de água, e vamos percorrendo o nosso curso até à foz, onde, já transformados em torrente caudalosa, nos fundiremos com o mar, com o eterno.
Ao longo da viagem acolhemos afluentes que connosco se confundem e se unificam, e geramos efluentes que seguem o seu destino de rios novos.
Todo o curso, da nascente até à foz, é movimento, passagem, caminho. Cada marco da jornada tem a expectativa da chegada, a vivência da estada e a memória da ultrapassagem.
Não há eclusa ou barragem que detenha o rio para sempre; não há planície suficiente que espraie as águas, aquietando-as e fixando-as à terra. Não. Todos os rios correm para o mar e lá chegarão, aconteça que acontecer.
Paisagem após paisagem, iremos desfilando até ao encontro com esse mar imenso, belo e poderoso que nos espera e que, ao colorir-nos de azul, nos fará confundir com o céu quando formos olhados do horizonte.
Ser rio é, pois, ser movimento e vida. É viajar, cumprir um curso, um itinerário.
Sabendo o que então sabemos, o que me parece é que de nada serve, em nada altera fazermos a viagem contrariados, desconfiados, maledicentes. A viagem é para desfrutar, toda ela, é para gozar, apreciar, ir passando com ânimo, optimismo e muita curiosidade e expectativa.
Desde incertezas em que somos regato, até à serenidade de quando formos estuário, iremos percorrer paisagens tão diversas, tão inesperadas. Umas belas, outras nem por isso, umas valiosas, outras vulgares, umas excepcionais, outras comuns, umas alegres e outras tristes, ora luminosas, ora sombrias, calmas ou agitadas, serenas e dóceis ou perigosas e violentas, sob penhascos aterradores ou correndo ao lado de planícies tranquilizadoras, terras e lugares de civilização e companhia. O desfile será variado, pleno e completo.
Nesta viagem, tudo nos vai aparecer, surgir na volta de cada curva, e de nada serve tentar adivinhar ou antever o que vai surgir, porque a natureza dita uma variedade e alternância surpreendentes.
Quando proponho, por atitude, o desfrute, é porque estou convencido de que só quando formos estuário compreenderemos a unidade, o sentido pleno, global, da viagem percorrida. Só no estuário tudo fará o seu sentido definitivo, e se fará luz sobre o desconhecimento, a angústia e o medo, esse espectro que tantas vezes nos acompanha e ensombra.
Acredito que a clarividência é atributo do estuário. Quando olharmos o mar que nos espera, surgirão, natural e tranquilamente, o conhecimento, a verdade.
Vamos, pois, como rio, percorrer o tempo e o espaço, desfrutando, e não nos consumindo a tentar compreender o que é para ser conhecido, revelado, quando formos estuário, e não antes.
Mas, além do desfrute, tenhamos presente, a cada tempo e paisagem, que eles são irrepetíveis: nunca mais voltaremos a passar por cada parcela que passámos.
Esta irrepetibilidade, este facto de o presente se converter em passado (imediata, constante e sistematicamente), do tudo durar nada, exige que não adormeçamos, perdendo nesse sono o que vai passando, deixando de viver com sofreguidão cada milha do trajecto que vai sendo o presente.
Até porque a mãe natureza, quando desenhou sabiamente o nosso leito, criou espaços e tempo que contemplam todas as variantes contidas entre os extremos de sermos águas calmas em doce e suave movimento e sermos enxurradas. Como rio, teremos troços de estada e troços de precipitação e voragem. Todos são para passar com aproveitamento e benefício.
Os de serenidade são os reflexivos, os tranquilos, de descanso, de paz – os perdulários chamam-lhe monotonia e aborrecimento. Os de enxurrada são de emoções, exaltações, paixões, arrebatamentos, coragem, desafio – os perdulários chama-lhe loucura.
Parafraseando, cada jogo tem a sua beleza. Há que jogá-los todos e consumir a beleza de cada um.
Toda esta dinâmica do rio que ficciono sermos, com o seu movimento contínuo, de seguimento para a foz, de ultrapassagem, está sujeita a leis inexoráveis, que nos cumpre interiorizar e viver em conformidade, porque são as leis da nossa ficcionada essência, da qual destaco duas na formulação popular que diz muito e que é sábia: “ águas passadas não movem moinhos”, e “a água do rio não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte”.
Ruminar o passado, ou reeditar edições da vida que já foi consumida, são tentações e fraquezas de mau resultado, com custos e perdas várias, de que não é menor a perda da paisagem que passa durante esses exercícios, com o desvio do olhar para essa que jamais se poderá rever.
O passado, no seu bom e mau, forma o caudal do rio que em cada dia somos, é volume, é massa, que influi, acrescenta e se incorpora como a água da chuva e nos faz rios maiores e mais cheios, mas não é mais destrinçável: segue viagem com o todo, diluído, absorvido.
Por outro lado, isto de ser rio tem também as suas vantagens, cuja verificação científica nos conforta e anima nas horas de maior desânimo. Senão vejamos.
Os rios, por muitas que sejam as secas, por muitas barreiras que lhes coloquem, por muito agredidos pela poluição, por muita canga que suportem, passam sempre, sobrevivem sempre, chegam sempre à foz. A força e persistência dos rios são invencíveis. Podem quase sucumbir tornando-se regatos, ribeiros, mas resistem sempre, retomam sempre caudal e vencem sempre, passam qualquer barreira ou dificuldade e cumprem-se, chegando ao mar. Mesmo que, por vicissitudes e desgraças várias de percurso, nos tornemos em fios de água, chegará o momento em que as águas passarão as dificuldades, retomarão e engrossarão o caudal.
A outra vantagem, é que os rios não têm idade, não têm velhice, não descontinuam a vida por se sentirem chegar ao estuário, na iminência da foz. Os rios são-no sempre e orgulhosamente até ao confronto derradeiro com o mar que abraçam e para o qual correm.
Ora, sendo nós rios, que nos importa o curso vencido, as milhas percorridas ou que faltam percorrer? O que importa é, até à derradeira preia-mar que selará a fusão com o mar, correr, viver, banhar, resplandecer, sonhar e encantar.
Sim, encantamento, porque só nos rios existem as tágides que nos iluminam e inspiram, levando-nos para as dimensões poéticas que são as verdadeiras.
Sejamos rios.

ATM

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