Aspas: sinal gráfico que destaca títulos ou nomes comerciais, sendo também usado para delimitar citações ou realçar uma palavra ou expressão.
***
Em 1979 tive uma curta experiência veraneante como jornalista. Durante meia dúzia de meses, se tanto, fui jornalista estagiário no jornal O Dia, um matutino importante pela sua não conotação com o governo vigente. Data dessa altura uma qualificação ternurenta que me apodaram - especialista em matéria vaga - já que, enquadrado na secção de informação geral, cobri o impacto do aumento do vinho na cooperativa de Palmela, um congresso de medicina dentária, o desaparecimento da pequena Sofia B da estrada da circunvalação onde vivia com os seus pais, e outras importâncias semelhantes. Também nesse âmbito generalista me deslocava amiúde à Polícia Judiciária para consultar o rol de actividades dos meliantes. E foi aí, à Gomes Freire, que acrescentei ao meu léxico a expressão varinha mágica - designação que desconhecia - artigo que havia sido furtado na véspera.
(De notar que foi só após 1981, já eu estudava integrais duplos, centipoises e resistência de materiais, que me confrontei com o termo trem de cozinha, novidade que fez de mim um homem diferente).
É também nessa altura jornalística que me atrevo, com 21 anos feitos de ignorância, despudor e ingenuidade, a escrever sobre corridas de touros. Um dia, proveniente de um bandarilheiro cujo nome não esqueci jamais, recebo o sobrescrito abaixo, irrepreensível na sua caligrafia de Futura preta. O conteúdo é irrelevante, apenas o cartaz de umas festas em Vila Franca de Xira.
O que podemos realçar no sobrescrito, para além de ser um documento com 36 anos guardado numa caixa com objectivo indefinido? A resposta está nas aspas em torno de crítico tauromáquico - um símbolo gráfico que muda tudo, que põe tudo em questão.
Se eu escrever gato tem quatro patas, a frase está correcta. Se eu escrever gato tem quatro letras, a frase está incorrecta. Mas se eu escrever "gato" tem quatro letras, a frase torna-se de novo correcta. O que altera tudo? As aspas. As aspazinhas. O animal gato tem quatro patas mas não tem quatro letras. Só a palavra gato é que tem quatro letras. Vamos ao último raciocínio: a frase "'gato' tem quatro letras" tem quatro palavras. As aspas, de novo.
Mudemos de âmbito. Se eu escrever Prof. Miguel Relvas a frase está incorrecta, porque o cavalheiro que ascendeu a ministro não é professor. Se eu substituir Prof. por Dr. a frase torna-se dúbia, porque não se sabe que habilitações literárias tem o senhor. Agora, se eu lhe dirigir um sobrescrito para indagar onde há seminários de folclore ou cursos de gestão de ranchos e o endereçar ao "Dr." Miguel Relvas a conclusão é simples: há gozo! A utilização das aspas não destaca títulos ou nomes comerciais, como o bandarilheiro usa em jornal "O Dia". No caso de Miguel Relvas reflecte uma ironia - ah! e tal, ele não é bem doutor...
O que significam as aspas na expressão abaixo do meu nome? Significam ironia, isto é, Miguel Relvas está para doutor como João Bragança está para crítico tauromáquico? Ou significam apenas a expressão crítico tauromáquico e, nesse sentido, poderia estar "apreciador de vinho" ou mesmo "gente alta" ou ainda "oh laurentina, vem à janela...".
Houve gente que escreveu muito sobre isto, sobre uso e menção. Só me falta perceber porquê.
JdB
Só o JdB consegue fazer humor com as aspas.
ResponderEliminarDe facto!
Imbatível na humanização das vulgaridades.