Álvaro tinha entrado na Igreja pela primeira vez de mão dada com a Marília. Não iam casar e, por isso, a frase é metafórica, se bem que não seja estatisticamente impossível. A rapariga queria apresentar-lhe Jesus, os mistérios, os sacramentos, o incenso, o serviço ao próximo, o Céu e a ausência dele, que os mais antigos chamavam Inferno. Tal como se chama frio à ausência de calor e escuridão ao que é a inexistência de luz.
Álvaro gostou da sensação de ser alcandorado a cristão-novo no século da tecnologia, das redes sociais, da solidão das multidões estranhas. Absorveu tudo com um furor quase missionário; inebriou-se com os fumos que saíam do incensório, olhou com temor para os pecados mortais, fixou os mandamentos como se o seu futuro dependesse disso e cresceu para os inimigos da fé como se atacassem algo intrinsecamente seu.
Marília tinha um odor de virtude que surgia por baixo de um perfume adocicado e inebriante – se bem que a condição “e” pudesse ser fatal. Era uma rapariga gentil, cordata, disposta ao perdão, sorridente, prestável e humilde. Zangava-se pouco com as pessoas e vivia num impulso permanente de promover a paz e o amor onde a discórdia e a guerra assumissem foros de domínio.
Daquela boca fina, de lábios delgados e dentes muito perfeitos saía um discurso singelo, minado de uma coerência permanente com os ensinamentos mais antigos e mais perenes que regulam o saudável convívio entre os mortais
Deixa, a culpa é minha;
Na realidade não tenho um feitio fácil;
Não te zangues;
Peço desculpa se te ofendi.
Deixa estar – não te preocupes comigo;
Podemos esquecer este assunto?
Estás mais do que perdoado, eu também não estive bem...
Álvaro cresceu na fé – e na vida com a Marília, vá... - com este discurso, esta atitude constante, este apagar de si mesmo. Impressionava-se e, entre duas minis bem geladas e um prato de caracóis, confessou a um amigo, ateu militante e inspector das finanças, que duvidava por definição da legalidade fiscal dos padres, que a felicidade da namorada lhe advinha daquela humildade, daquela paz com a vida, daquela incapacidade do rancor e da raiva.
Um dia, quis o destino que as mãos de ambos percorressem territórios alheios – não territórios terceiros, no sentido da infidelidade mútua. Álvaro era um homem vivido, se bem que a noção do pecado lhe viesse a refrear os ímpetos, e temeu o desencontro de tempos e de ritmos, afligiu-se que um excesso de pudor, filho de uma castidade incoerente, matasse a sensualidade e o erotismo.
Marília desapertou um botão da camisa junto ao pescoço magro onde latejava uma veia num frémito circulatório. Ao lado dela o recém-convertido estirava-se na sua nudez, sem saber se a companheira a veria – essa tal nudez esplêndida – com uma dimensão demasiado pecaminosa. Álvaro olhou para ela, para aquele corpo magrito que seria seu, e enterneceu-se perante uma humildade que lhe abria portas para a explicação das virtudes do toque, do beijo, da lentidão, dos finais conjuntos, da criatividade.
Trinta minutos depois, o frémito circulatório tinha-se passado para as veias de Álvaro. Afinal não tinha sido preciso ensinar-lhe nada: a rapariga que citava as escrituras, dominava as vidas dos santos e falava dos dogmas com uma facilidade invejável, tomara mão dos ritmos, do virtuosismo, da elasticidade dos corpos, do gosto pela experiência.
Tu desculpa, Álvaro, se calhar não estive muito bem. Tenho pouco jeito, sabes...
Álvaro olhou para ela, percorreu-lhe o corpo com um olhar indecifrável e, antes de atender o telefone ao tal inspector das Finanças - o TóJó - que ficara de indagar do IRC das ordens religiosas disse-lhe:
És uma mulher orgulhosa, sabias Marília? Não há aí humildade, mas orgulho. E isso é um pecado, ou não?
Diz Tójó...
JdB
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* publicado inicialmente em 3 de Maio de 2010.
Volta JdB, estás perdoado!
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