Tivesse-nos dado Deus uns olhos diferentes e todo o mundo seria também diferente. A diferença não era uns olhos mais resistentes, sobre os quais não se pudesse dizer vista vazada; a diferença também não era um colorido diferente e ao jeito da estética, adaptado ao lenço do blazer ou à cor da blusa, como se tudo no nosso corpo e roupas adjacentes fosse um permanente ton-sur-ton. A diferença era, apenas, um olhar mais penetrante. Apenas isso.
Eu explico melhor, mesmo sabendo que tanto faz, pois às vezes a explicação é um fosso (um fenómeno muito vulgar em relações humanas) ou uma inutilidade. Mas avanço mesmo assim, arrogando-me da propriedade do estabelecimento. Apesar da minha idade, sou um velho. A frase, desinteressante, podia tê-la dito há dez anos; ou mesmo há vinte ou, quem sabe, há quarenta. Talvez tenha sido sempre um idoso de espírito, que o corpo ainda se mantém civilizado q.b.
Sábado fui a um jantar, e ao fim de 30 minutos era eu - um velho. Mais precisamente a uma festa, onde estariam cerca de 400 comensais. Tomámos os nossos lugares e eu senti uma batida persistente no peito. Não sendo excesso de emoção, não sendo arritmia cardíaca, não sendo um amigo maçador a querer a minha atenção para uma anedota, o que poderia ser? Percebi rapidamente - era a música. Uma batida electrónica, feita seguramente por um bêbado que, após ter criado a primeira frase no computador, caiu de borco sobre a tecla repeat. Assim durante trinta minutos, o meu coração bateu a descompasso, enquanto ao longe se perfilava uma fila para os frios - um bufete, outra coisa de que não sou apreciador.
Na sua dimensão mais corriqueira, há uma ideia erradamente certa de bem-estar e de alegria humanas. Imaginando nós uma receita - tipo alegria à morra dantas morra pim - há ingredientes que teriam lugar cativo, e o ruído é um deles. As pessoas casam e, durante o almoço ou jantar, a música persegue-nos numa dimensão invasiva, impedindo conversas ao diâmetro da mesa; vamos a uma loja e queremos fugir, porque o volume do som violenta tudo. Etc., etc., etc. Em qualquer lugar onde vamos tem de haver ruído, som, música. O silêncio é sinal de tristeza, melancolia, solidão, depressão e seus derivados. Quem vive com som em casa é sempre feliz. Quem ouve música alegre é sempre alegre, quem ouve música triste (entremeada de silêncios) é sempre triste.
Outro sintoma de felicidade e bem-estar é a dança. Um corpo dançarino é o paradigma mais evidente de uma mente que sorri. Agitação é bom, muito bom. Uma mulher que dança sozinha (sim, porque aqui, ao contrário do Zimbabwe, os homens dançam pouco, menos ainda sozinhos) é sempre uma mulher, mais do que em paz, em êxtase com a existência. Uma pessoa que não dança é uma pessoa triste, a quem a alma castiga com lágrimas e suspiros de dor. Por isso, gente que não gosta de ruído (ou mesmo de música em permanência) e não se agita freneticamente pela pista deveria ter benefícios fiscais, protecção do sistema nacional de saúde, prerrogativas de novenas de oração.
O mundo moderno é feito por seres detentores de uma mente para a qual se deve olhar com atenção - e preocupação. Tivessem eles uns olhos diferentes - lá está, mais penetrantes - , e perceberiam que a música nem sempre é benéfica. Por vezes só serve para disfarçar ventosidades.
JdB
.. porém vamos, e vamos provavelmente para nos confrontarmos com esse oposto que nos atrai e que depois repelimos , muito sossegados e satisfeitos por vermos confirmado o nosso way of life , além de que um pouco de agenda social cai sempre bem.
ResponderEliminarFado é musica?
ResponderEliminarHá quem oiça fado a disfarçar ventosidades e a descascar uma resma de cebolas. Isso é loucura, tristeza ou apenas isso.
Será que o ruido e o corpo a abanar são inseparáveis da turba alucinada, ou podemos praticar esses modelos no sossego da nossa sala?
Pois!