01 junho 2015

Vai um gin do Peter’s?

Dos bons filmes deste primeiro semestre de 2015 é o incisivo e poético «PHOENIX»(1), no género de film-noir.  À parte de ser o nome do bar onde Nelly Lenz reencontra Johnny, o marido que adora, a alusão ao mito grego é óbvia e fundamental. Imensa qualidade na realização, no desempenho, na banda sonora, na reposição da época, na fotografia, no argumento. Ainda por cima, incrivelmente original.


Nelly e Johnny

Na mitologia grega, fénix é uma ave maravilhosa dotada da capacidade de pressentir a morte. Nessa altura, bate as asas vigorosamente entrando em combustão e convertendo-se num pássaro de fogo, sendo consumido pelas chamas como tocha viva. Os animais em redor são atraídos pelo seu canto, na hora da partida, sucumbindo também. Diferentemente dos outros seres, das cinzas da fénix renasce uma nova vida, prolongando a sua existência por mil anos. Um longuíssimo período, onde enfrentará uma solidão profunda, ciclo após ciclo, condenada a reviver. Ao despontar, o novo pássaro tem o cuidado de recolher as cinzas do seu progenitor num ovo de mirra e voar até à cidade egípcia de Heliópolis, dedicada ao rei sol, para as oferecer no altar da divindade. Tornou-se, assim, metáfora do sol que renasce cada dia, invariavelmente. Com a cristianização da cultura ocidental, converte-se em símbolo de Cristo, que se entrega à morte para a vencer e ressuscitar, conferindo conotação positiva à fénix, não mais votada ao isolamento.

A câmara inicia a filmagem no banco de trás de um pequeno carro que tem de se submeter ao controlo alfandegário montado na cidade de Berlim, dividida em 4 zonas internacionais, desde a rendição (1945). Este pertencia aos americanos, que quiseram certificar-se de que a passageira com a cara enfaixada estava mesmo ferida e não se tratava de uma hábil camuflagem. Estamos em tempo de caça ao homem para levar a tribunal os responsáveis nazis, quase todos a monte. Inicialmente duro na voz de comando para que retirasse a ligadura, o mesmo soldado tem depois a réstia de humanidade de pedir desculpa, face à evidência. Percebemos também a identidade da condutora que dava boleia à ferida: judia vinda de território protegido, na Suíça, onde fora poupada ao destino comum dos judeus e de tantos outros perseguidos pelas SS.  

Atingida na parte do corpo que define a identidade, por excelência, a lesionada tem de se submeter a uma cirurgia plástica, onde o diligente médico sugere para modelo caras de actrizes de sucesso. Mas nada demove a paciente, obstinada em recuperar integralmente as feições. Não, não queria aproveitar para corrigir nada. Caso único, a deixar o cirurgião desconfortável, como explicou sem sucesso, porque o mais difícil seria tentar reproduzir o original com exactidão! Aperfeiçoamentos estéticos resultavam bem mais fáceis, além de ser a opção universal, excepto para aquela avis rara. Nelly (encarnada pela extraordinária Nina Hoss), mostrava-se invulgarmente ciosa da sua identidade, mas explicando-a como uma necessidade extrema; nem tanto por uma vaidade desmedida ao que fora, desde o nascimento.     

O desfiar da trama vai-nos mostrar o motivo daquela urgência, argumentada com uma premência sôfrega: precisava mesmo de ser reconhecida! Por isso, tinha de renascer exactamente como era, sem retocar nada. O milagre da sobrevivência aos maus tratos do campo de concentração devia-se ao amor devotado a Johnny – o pianista que a acompanhava nas baladas com que costumava encher a noite em bares de Berlim. Só o empenho em voltar aos braços protectores do marido lhe dera ânimo para nunca soçobrar. Ora, a vida franqueara-lhe uma nova oportunidade, inclusive assegurando o sustento, pois beneficiava da avultada indemnização concedida aos poucos sobreviventes.

A sua amiga e salvadora, a judia vinda da Suíça, estava empenhada em que refizessem a vida no recém-criado Estado hebraico (na Primavera de 1948). Sem se poupar a esforços, apoiou Nelly na convalescença pós-operatória e, mais ainda, pós Auschwitz (ou prisão equivalente). Mas, mal começou a aguentar-se em pé, Nelly preferiu mergulhar sozinha na agitada noite de Berlim, em busca de Johnny, que a amiga acusava de ter sido o responsável pela sua denúncia aos seguidores de Hitler.  

Muito cambaleante, enfrentou os perigos das ruelas escuras de uma cidade arruinada para o descobrir metamorfoseado num modestíssimo empregado de mesa, de olhar fugidio e perdido, à espreita de oportunidades para sobreviver.

Neste filme, que entremeia boa música com silêncios expressivos, a comunicação pelos olhares sobrepõe-se às parcas falas entre personagens, exigindo enorme domínio da linguagem gestual e facial. A expressão triste de Nina Hoss (Nelly) na estação de comboios, a participar numa cena artificial montada por Johnny para se assumir publicamente a sua chegada de Auschwitz –assemelha-a a uma morta-viva incapaz de corresponder aos abraços horrivelmente postiços de uns alegados amigos, figurantes como ela a pretender festejar um regresso em que a festejada se sentia a mais. Só a sua indemnização era desejada. De resto, nem a sua sombra tinha já lugar naquele mundo que a dispensara olimpicamente e até favorecera a sua prisão. Como pudera o momento crucial do seu regresso à vida – ainda que simbolicamente – tornar-se num teatro cruel? É brilhante a forma como, de seguida, Nelly se dá a conhecer a essa sociedade hostil e predadora, surpreendendo o monte de figurantes, ao pedir a Johnny para a acompanhar ao piano numa ária cheia de simbolismo. Às primeiras teclas, entoou com esforço, destreinada, um canto doce. À medida que a voz e a convicção aqueciam, as notas ganham firmeza e intensidade. Mas nada que tocasse a pequena plateia, cristalizada na sua indiferença. A dada altura, também o piano se estanca, ficando sozinha a voz já segura de Nelly. Johnny vira-lhe o número tatuado em Auschwitz, ele que pensara e desejara ardentemente, estar a lidar com uma sósia da mulher, morta.  Nem queria acreditar que renascera.

Como a fénix, pressentindo a hora da morte, atraiu os outros com a sua música. Mas, sendo uma estranha no local que antes fora a sua pátria, teria de renascer sozinha noutra paragem. Logo ela que tivera o cuidado de readquirir a fisionomia original. De todas as possíveis dificuldades em ser identificada, não antecipara o maior obstáculo: a recusa de a aceitarem na totalidade, com todo o seu passado.

A convicção de Johnny, exacerbada pelo desejo da morte da mulher, tornara impossível reconhecê-la, nem mesmo depois de a obrigar a replicar, na perfeição, a sua própria mulher antes de a enviar para Auschwitz. Aliás, todo o esforço de imitação imposto à magrizela era meramente utilitário, destinado a equivocar as autoridades  para a fazer passar por Nelly e assim poder reclamar o óptimo subsídio a que tinha direito como sobrevivente e reparti-lo com Johnny. Ou seja, só motivos calculistas o animavam a explorar ao limite as notórias parecenças com a falecida, mas sem que isso o aproximasse afectivamente daquela mulher, que sempre encarou como uma estranha, denotando-se  com alguma repulsa epidérmica. 

É nesta vontade de querer ser reconhecida por quem é, entusiasmada com a ideia de recuperar o marido, que Nelly aceita aprender com ele a ser um duplo de si mesma, descobrindo, depois, as vantagens do seu desaparecimento. Inconveniente mesmo seria renascer… O argumento enreda-nos num difícil confronto entre o que se é e a imagem que se projecta. Entre a essência da pessoa e a forma como esta é percepcionada. Entre a fisionomia de cada um, necessariamente marcada pela realidade vivida, e a expectativa que os outros têm sobre essa pessoa, a ponto de lhe impor uma imagem estagnada na versão mais agradável. Pouco importava se divergia da pessoa que tinha, entretanto, avançado na idade e acumulado novas marcas, nomeadamente cicatrizes dolorosas.

O empenho em reaver o marido aguçam-lhe o realismo, intuindo bem a incapacidade, ou mesmo aversão de Johnny em aceitar que ela fosse quem era. Por isso, prescinde de lhe apresentar provas irrefutáveis, apesar da evidente semelhança com a mulher, como reproduzir na perfeição a sua caligrafia ou outras especificidades em que Johnny a treinava para ludibriar as autoridades. Nem sequer no beijo fortuito – que Johnny tivera de improvisar, na rua, para esconder, habilmente, a cara a uns transeuntes – desconfiara do excesso de semelhança com a falecida. 

Paradoxalmente (ou não), um grande entrave ao seu reconhecimento é a sua excessiva de autenticidade. Ela que pensava ser mais realista mostrar o rosto marcado pela passagem pelo campo de concentração –  sinal incontornável dos sobreviventes! Mas teve de se dobrar à evidência, algo humilhante, de só ser identificada se recuasse para o aspecto que tinha antes da guerra. Mais: devia engolir toda a dor acumulada no cativeiro, pois ninguém parecia interessado em saber o que se tinha passado, menos ainda em acompanhá-la na exorcização desse sofrimento tremendo.

Ficou estupefacta com a ideia artificial de Johnny para recriar, apenas por uns dias, o regresso da mulher morta, imaginando-a a chegar à estação bem maquilhada, cabelo arranjado,  vestido encarnado e sapatos de salto comprados em Paris, com o ar fresco dos tempos em que cantava em bares. Embora lhe soasse fantasista, o facto é que surtiu óptimo efeito no teste de reconhecimento por parte da estalajadeira das redondezas, mal ela apareceu na esplanada de bâton e fato escarlate. Tudo confirmava o desinteresse generalizado pela experiência de guerra dos sobreviventes de Auschwitz, com excepção da compatriota e amiga judia. Percebe-se que a maioria já não aguenta más notícias, sobrevivendo a custo numa capital depauperada. Pelo que o preço para ser reconhecida exige-lhe retocar a sua história e recuar para um passado onde tudo fluía confortavelmente. Afinal, os conselhos do cirurgião tinham sido premonitórios e bem realistas…

«PHOENIX» revela-nos como é tão difícil reconhecer quem não se ama. Porque só quem ama fixa a individualidade única do ser amado. Enquanto Nelly não hesita em reconhecer o marido desfigurado a limpar as mesas dos clientes, ele que antes tivera lugar de honra nos bares exibindo o garbo do artista, tem agora de se render à evidência de que, não sendo desejada, dificilmente poderia ser reconhecida. Menos ainda pelas suas particularidades.

O desafio de ser ou não ser converte-se no filme num jogo cruel, pois pouquíssimos querem que Nelly seja quem é. Talvez por isso, só a amiga tivera a alegria de a reconhecer, apesar de ter encontrado com a cara desfeita por uma bala. Vê-se melhor com o coração. É a partir daí  que o olhar pode, verdadeiramente,  (re)conhecer o outro. No fundo, nada mais afectivo do que a memória. Só por si, os olhos podem pouco, abandonados à pequenez do seu campo de visão. Entre aparências, preconceitos e distrações, a margem de erro cresce exponencialmente, levando-nos a ver o que dá jeito.

Apetece citar Pessoa, que nos lembra que não somos do tamanho da nossa altura, mas do tamanho daquilo que vemos, quando recuperamos um olhar que se deixa iluminar pelo coração, reabrindo-se à realidade.  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
PHOENIX
Título traduzido em Portugal:
PHOENIX
Realização:
Christian Petzold
Argumento:
Christian Petzold e Harun Farocki a partir do livro de Hubert Monteilhet: «Le Retour des Cendres»
Produzido por:
Florian Koerner von Gustorf e  Michael Weber
Banda sonora:
Stefan Will
Duração:
98 min.
Ano:      
2014
Países:
Alemanha e Polónia
        Elenco:

Nina Hoss (como Nelly Lenz)
Ronald Zehrfeld (o marido Johnny)
Michael Maertens (cirurgião plástico)


Prémio da Crítica Internacional na Alemanha, premiado em: Lisbon & Estoril Film Festival, San Sebastian International Film, Hong Kong International Film.


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