De uma povoação remota da
Tanzânia, junto à fronteira com Moçambique, vem o talento vitamínico e elegante
do pintor Edward Saidi Tingatinga (1932-1972), que transpõe a natureza pujante
e colorida de África para a tela, numa harmonia e serenidade espantosas. Nos
dois primeiros nomes tem as marcas da sua dupla herança: cristã do lado materno
(Edward) e muçulmana do lado paterno (Saidi). Com uma vida atribulada, percorreu
diferentes regiões da Tanzânia aproveitando as oportunidades de trabalho que
surgiam. Acabou por ter uma carreira artística muito breve, de apenas 4 anos. Apesar
disso, a sua obra marcou a arte do continente, parecendo inspirar-se nos murais
africanos primitivos. Por isso, é simultaneamente tão nova e tão expectável.
Nos anos 50, mudou-se para o
Norte do país, para ir trabalhar numa fazenda agrícola, conseguindo depois
tornar-se cozinheiro de um oficial britânico que acabou por o promover a
jardineiro. Foi nessa altura que começou a explorar hobbies artísticos, na
música e na pintura. Utilizando os resíduos domésticos, como fragmentos
cerâmicos e ladrilhos variados, em telas de tamanho portátil, coloridas com
tintas de fabrico caseiro, fazia composições naïves e bem humoradas, a
representar a vida selvagem da savana. Entre os turistas ocidentais,
rapidamente transformou-se num ícone da África dos safaris, ganhando suficiente
para se dedicar em exclusivo à arte. Apesar da morte prematura em 1972, baleado
pela polícia que o confundiu com um fugitivo, Tingatinga deixou inúmeros seguidores
e até imitadores das suas telas, clonadas ad exaustum. Esse o motivo por que algumas das aqui
postadas suscitam dúvidas de autoria.
As paisagens lindas e orgânicas,
pacíficas e funcionais caracterizam o seu legado, com um humor refrescante, que
alguns críticos sustentam conter sarcasmo e mordacidade. É possível que também
pese o olhar de quem observa a sua obra, incrédulo por provir do nativo de um
continente dilacerado por guerras, fome e violência de toda a ordem. Até os predadores
que habitam as suas telas sugerem bonomia, em poses tranquilas e garbosas, mas sem
a fantasia infantil de se verem reduzidos a animaizinhos de estimação negando-lhes
a evidente indomabilidade. Por isso, o pintor mantém-lhes o olhar faiscante de
felinos, apenas depurando-os da agressividade mais primária e sanguinária. Aliás,
não é pouco pousarem (quase sempre) sem herbívoros por perto, a salvo de possíveis
tentações. Acima de tudo, adivinha-se-lhes nobreza de carácter. Neles e nas
suas presas. Até as plantas verdejantes, que serpenteiam festivamente por toda
a arte de Edward T., ajudam à animação.
Atribuível
a Tingatinga, apesar da multidão de imitadores do seu estilo.
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Um
olhar tão confiante e entusiasmado sobre o Continente Verde é, só por si, um
balão de oxigénio, tanto mais meritório quanto Tingatinga assistiu em directo
ao dolorosíssimo processo de descolonização de inúmeros países da África
austral, marcados por banhos de sangue e crueldades tremendas. De onde lhe veio
então tamanha confiança, como se tivesse vivido num jardim paradisíaco onde
reinasse a felicidade suprema? Terá estado no mesmo planeta problemático do
século XX? É verdade que a figura humana rareia, o que não será destituído de
significado.
Ainda assim, a regra acaba por
ser confirmada pela melhor excepção, com as silhuetas lindas das mulheres
africanas, invulgarmente etéreas na perspectiva de Edward T. Bem em destaque,
dispensam os adornos decorativos da vegetação, como se o céu fosse o único
cenário à altura da sua passagem.
Na
mesma linha, são raros, mas não menos bonitos, os vestígios da presença humana
na paisagem alegre do continente, com habitações maravilhosamente integradas na
natureza, dando espaço à fulgurância da flora circundante, sem se imporem
minimamente.
No estilo de Saidi |
O belo é uma constante na sua
obra, ilustrado através das múltiplas facetas da vida natural sempre em
composições onde até os cardumes de peixes acinzentados brilham em movimentos
coreográficos que lembram os passos de dança na natação sincronizada. Sim, tudo
se torna estético depois de cruzar o olhar e o pincel do pintor apaixonado pelo
reino vegetal e animal de África. Significativamente, os sites com as suas
pinturas auto-intitulam-se another-africa, inside-african-art, etc.
Muito curiosa
a paleta de cores híper comedida e imprevista num africano rodeado pelo colorido
intenso dos trajes dos seus conterrâneos, que são verdadeiras explosões cromáticas,
transpostas em versão bem menos garrida por Edward T. De facto, reduz o espalhafato
mas não o efeito cénico, esse sempre ao rubro.
Uma das
grandes ironias de Tingatinga ressalta numa natureza-morta à base de frutos, formando
um conjunto bastante vistoso, apesar do espectro de tons ser pobre.
Simplesmente, a escolha cirúrgica de tonalidades contrastantes surte o efeito oposto.
Será possível aplicar à tela o nome técnico de natureza-morta? É um facto que a expressão inglesa still live é bastante mais feliz para designar este
tipo de composições, embora no caso de Edward T. também seja de difícil
aplicação, de tal modo a sua arte está impregnada de vida. Só não tem violência
nem carga negativa.
Mesmo a variedade
que sobressai nas suas obras tem qualquer coisa de ilusório, pois o pintor recorre
frequentemente à repetição de elementos, tendendo para uma padronização que confere
harmonia ao todo. A partir de um jogo de formas hábil consegue sugerir uma
diversidade e um movimento que estão longe de ser reais. A colocação certeira de cada elemento (em
geral, bichos) forma uma trama coerente, deixando de se percepcionar individualmente
cada parcela do todo. Por isso, a maioria dos quadros de Tingatinga é
comparável à polifonia dos coros musicais, valendo o resultado pela pluralidade
de vozes bem orquestradas, não fazendo qualquer sentido dissociá-las umas das
outras. É o caso dos peixes ou até das girafas na tela em baixo à esquerda.
Outra
invulgaridade deste artista é a superabundância de fundos escuros, parecendo
esquivar-se ao sol abrasador daquelas paragens.
Parece antes
preferir os poentes e o pousio nocturno da selva, embora a plena actividade
animal que pinta não se coadune com o sossego das noites na savana. De facto,
trata-se de um efeito decorativo, onde o cenário escuro proporciona maior
realce e brilho ao que se exibe em primeiro plano. Aplicando a mesma lógica, noutros
casos optou por fundos laranja fogo, a coincidir com os tons do entardecer, dando
maior vivacidade aos animais de listas em preto-e-branco. E ainda lhes aguçou o
olhar tingindo o branco leitoso da esclerótica ocular de laranja na tela à
esquerda, ou de encarnado nos antílopes ao centro, ou de amarelos quentes na
galinhola da direita.
Telas atribuíveis a Edward T.
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Predomina no
seu portfolio uma suavidade próxima do silêncio, como se espreitássemos os
primeiros segundos da criação, quando as diferentes espécies se começaram a
passear pela terra para se darem a conhecer uns aos outros, sem a rotina
sobressaltada da sobrevivência que, posteriormente, se terá instalado. Estaria
a vida animal a despontar no planeta, querendo cada qual confirmar presença no
reino dos vivos, quase numa exibição cordata, de acordo com o relato do Génesis?
Na tela da
esquerda, surgem ao fundo as neves eternas do Kilimanjaro.
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Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
Obrigado pela excelente informação. Desconhecia Edward Saidi Tingatinga.
ResponderEliminarO post brilha por dois motivos:
1 — A sensibilidade, a poesia, do texto.
2 — As imagens.