16 outubro 2015

Largo da Boa-Hora*

Não recebi a graça da santidade.
Sou vulgar, sem prejuízo da esperança e alegria que ponho neste desempenho da condição humana.
Vem isto a propósito quando aqui sentado no meu banco deste Largo pensava o tema deste escrito. Precisamente o perdão.
Entendo que o perdão incondicional é matéria do divino. No mais, ou é tema de amor ou é uma questão de possibilidade.
Enquanto tema e vivência do amor entre o culpado e a vítima, seja o perdão concedido ou negado, não são consentidos comentários ou juízos de valor que meçam o acerto dessa denegação ou concessão.
No amor, a regra é que não há regra nenhuma, o racional é que inexiste qualquer lógica justificativa da conclusão, “o coração tem razões que a razão desconhece”.
O único que é certo é que reina o incerto e, por isso, o mais improvável e inverosímil pode ser a escolha, a solução, o caminho. Estamos no reino da liberdade, da confusão, da distorção, do surpreendente.
Prevalecem sentimentos, impulsos, compromissos, vontades, desejos, fantasias, conformismos, teimosias, histórias, e tantos outros valores que ridicularizam a equação: facto/culpa/pena.
No amor, a palavra perdão nada significa, porque nunca houve o necessário pressuposto deste, precisamente a condenação, evitada pela esperança, resignação ou abnegação. Há acusação, mas raramente condenação.
Portanto, quando estão em causa laços amorosos, não há perdão, porque não há condenação, há desculpa, tolerância, esquecimento, esperança, fé na mudança, e tantos outros mecanismos de relativização das coisas, que fazem com que algo – até grave - possa não ser coisa nenhuma, num historial conjunto feito de outras grandezas e pequenezas.
Estando, pois, de fora a acção divina do perdão e o seu exercício na vivência amorosa, vejamos o perdão à luz do possível.
Perdoar é desconsiderar totalmente um acto praticado intencionalmente sobre nós, que constitua violação dos nossos direitos, valores ou essencialidades. Perdoar é apagar da história uma agressão e suprimir totalmente os seus efeitos, incluindo na esfera dos afectos, é tudo se passar, ou voltar a passar, como se o mal praticado não tivesse sucedido.
Defende-se muito o perdão como uma obrigação dos homens bons, e um especial dever dos que inspiram a sua vida numa fé religiosa. É recorrente a exigência do perdão como condição de perfeição individual e de pacificação de nós próprios e do mundo (seja o nosso pequeno mundo, seja o outro…)
Com todo o respeito, penso que essa exigência do perdão é irrealista, e constitui um apelo a um comportamento quase sempre impossível, gerando uma angústia indevida em todos aqueles que – e muito bem, a meu ver – entendem que o perdão é absolutamente excepcional, pois para o seu sucedimento têm de concorrer pressupostos que não são verificáveis na maioria das situações.
Vou sintetizar as minhas razões.
Perdoar exige que a agressão tenha cessado, se tenha consumado, e que não persista continuadamente. Só se pode perdoar depois, não durante. Ora, este requisito exclui muitas das situações da vida que podiam ser objecto de perdão, dado que grande parte delas são efectivamente acções que perduram pelos tempos, pelos anos.
Perdoar exige contrição e arrependimento do agressor. (São estes requisitos que distinguem, aliás, o perdão da amnistia). O agressor só pode ser elegível para o perdão se assumir o erro cometido, o mal causado, a repulsa pela acção e o firme propósito de a não repetir. Ora, raríssimas são as situações da vida em que o agressor assume esta atitude de remorso e comprometimento para o futuro.
Perdoar exige a reparação do mal causado. A reparação, a reconstituição do partido, a cura das feridas da agressão são, na maior parte das vezes – na vida real – impossíveis de atingir. Reconstruir a confiança, a amizade, a sinceridade, a boa vontade, a solidariedade e tantos outros exemplos, são, em regra, caminhos impossíveis.
Cheguei pois onde pretendia: perdoar é raramente possível.
Excluído o perdão, como regra, perguntar-me-ão qual será então a via mais bondosa para lidar com a agressão e o agressor.
A meu ver, o caminho que está aberto aos homens de bom coração, é o da renúncia a responder ao mal com o mal, ao “olho por olho, dente por dente”
Renunciar ao desforço, à vingança, ao ódio, à perseguição, é o caminho que se deve impor nos nossos corações, como exigência da nossa integridade moral ou salvação, se preferirem. Não devemos responder à agressão com a retaliação.
Esta renúncia, se for conseguida, confere-nos grandeza, satisfação connosco próprios, sentimentos de paz de espírito, de vitória do bem sobre o mal.
Firmada a renúncia, podemos e devemos tactear caminhos de entendimento, pontes de compreensão, passagens de esclarecimento e, conforme formos concluindo, encetar o caminho da aproximação cujo culminar pode ser até a reconciliação, que não se confunde com o perdão. Uso esta expressão, reconciliação, no sentido de, no fim do caminho, poder até suceder um retomar de laços afectivos, profissionais, sociais que, ainda que definitivamente maculados pelo pecado original da agressão, possam ser suficientes para uma coexistência saudável, pacífica e proveitosa para a paz e bem de todos os envolvidos.
Sei, porém, que por vezes essa reconciliação também não é possível. Em especial, porque nem a agressão cessa, nem o agressor indicia arrependimento, nem sucede um esboço de reparação.
Quando assim for, não resta senão tornarmo-nos totalmente indiferentes para com o agressor, ser e agir como se ele já não fosse ou agisse.
Este fazer dos outros nadas, é a medida que nos permite viver sem o tormento da permanente recordação do mal cometido, sem a dor do sofrimento que nos é infligido, sem o risco do acirrar de rancores. É o caminho para o esquecimento do mal.
Esquecer o mal, apagar a história, é a defesa dos que renunciam ao ódio e desforço, e são impotentes para mudar o curso das coisas.
O irremediável não é bom companheiro, deixá-lo jazer no cemitério do perdido.

ATM

* publicado inicialmente a 21.01.2009

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