Lá fora o frio cortava e o vento ajudava a abrir os sulcos do corpo, feitos gretas nas mãos e lágrimas nos olhos. A chuva caía pequenina, esparsa, aqui e ali com mais força, inclinada e desconfortável. Laura entrou na igreja naquele meio de tarde precocemente escuro e sacudiu tudo: a água residual, as rajadas ventosas que não se viam, a temperatura inclementemente baixa, as agruras da vida tão coordenadas com o céu cinzento. Olhou à volta; não se lhe via desconfiança ou desconforto, apenas o anseio de ficar sozinha, porque o pudor manda que o choro seja discreto e partilhado na intimidade, não na nave central de uma igreja onde só o Altíssimo nos conhece a todos pelo nome.
Laura circulou: a senhora dos aflitos, a senhora das angústias, a senhora das dores; depois o senhor crucificado, o senhor curvado nos passos da via dolorosa, dos impropérios sofridos, dos escárnios desumanos. Olhou à volta e descortinou um vago cheiro a madeira molhada, a espaço desarejado, a penumbra poupada; talvez um odor a sussurros partilhadas na hora do terço ou da missa vespertina, onde a desgraça da vizinha é afirmada no mesmo tom de voz que a infidelidade do cunhado, ou o favorecimento do presidente da junta a uma prima que tropeça gorda nos buracos do passeio.
Laura passou pelo corredor central não sem antes ter depositado uma moeda na caixa de esmolas que teima em não encher, impedindo a reparação do tríptico do altar mor; é um quadro injustamente enegrecido pelo incenso, pela ausência de técnicos locais, pelo tenha santa paciência, senhor prior com que a diocese justifica os adiamentos permanentes. Laura toca a cabeça da senhora das dores, encosta um dedo beijado no pé da senhora dos aflitos, sorri humilde para a senhora das angústias. São estátuas simples, de gosto modesto, mas onde cabem, mesmo assim, os sofrimentos de todos os que se aproximam, esperançados - ou talvez já não - numa escuta que não tem prova visível.
Laura chega ao fim deste périplo crente. Foi esmoler, passou pelas senhoras que a todos ajudam e a todos escutam, rezou uma dezena breve. E ajoelhou-se aos pés do senhor escarnecido que, de sangue a escorrer pintado de uma testa fustigada pelos espinhos da coroa, se senta num tronco torto à espera do fim. Laura está sozinha e não resiste: debruça-se, ajoelhada, e encosta a sua testa alta, vagamente perlada pela chuva inclemente, ao peito sofrido do senhor do amor. Chora, não porque o senhor sofra, mas porque ela própria sofre, sejam maleitas do corpo ou do espírito, suas ou dos que lhe são mais queridos. As mãos apoiam-se cansadas nos ombros daquele que já tudo suporta, tudo padece, tudo aceita.
Durante cinco minutos o corpo de Laura não se mexe, como se dessa quietude dependesse a solução para os males que a afligem. Ao fim de um tempo que nada é face à eternidade, um telefone toca, não no âmbito dos discos pedidos, mas num rasgo brutal do silêncio contemplativo. É quizomba em modo de som crescente: dez segundos depois, enquanto Laura se endireita e se resguarda num nicho abandonado, abre a carteira, procura o aparelho entre lenços, baton carmim, lápis para os olhos, chaves do clio vermelho, documentos, carta das finanças, caderno pequeno com borboletas, meio queque embrulhado num guardanapo de papel, dez segundos depois, repete-se, a música invadiu o espaço, assustando as estátuas e o tríptico enegrecido onde uma salomé pouco arrependida mira com satisfação a cabeça do baptista:
- sim, sim, Vanessa, é a mamã. O que é o jantar? Olha filha, descongela uma posta de bacalhau. Gostas dele à Zé do Pipo?
JdB
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História inventada, obviamente, mas baseada numa cena real observada no fim de semana, numa bonita igreja de Viseu.
Deliciosa esta história.
ResponderEliminarPor favor vá até Viseu mais vezes ou 'traga-se' Viseu até si que a inspiração valeu...
Bj