06 janeiro 2016

Das fugas de casa

Train Yard (Fotografia de A. Aubrey Bodine, 1945)


Quem não quis um dia fugir de casa?

A frase reproduzida assim, a seco, parece quase infantil. Mas lida no contexto de um artigo sobre os últimos dias de Tolstoi [Biblioteca, Pedro Mexia, Tinta da China, 2015) abre-nos outra perspectiva. O escritor russo foge de casa, dos filhos, da mulher com quem viveu quase meio século, de uma incoerência: pregava a pobreza, mas vivia faustosamente, num ambiente mesquinho e colérico

A expressão fugir de casa tem tantas interpretações como o número de pessoas que a proferir. Fugimos de casa pela violência instalada; fugimos de casa para perseguir um sonho ou uma aventura; fugimos de casa, talvez mesmo, pela noção de estarmos a mais, pela sensação do indesejo. Fugir de casa pode passar por uma espécie de pré-aviso, não à socapa como o fez o escritor russo, suspeito de ter posto uma droga no chá da mulher. Fugir pode ser um afastamento precipitado, um sumiço, a procura de um esconderijo, um retiro. 

Para efeitos deste texto não me importo de referir que quis fugir de casa duas vezes: a primeira, quando por volta dos 16 ou 18 anos li O Fio da Navalha (Somerset Maugham) e me fascinou a história do protagonista (cujo nome já não recordo) que percorre o mundo à procura de qualquer coisa. Talvez, como no caso de Tolstoi, da coerência, que é uma espécie de verdade aplicada ao visível. A mim, ingenuamente feliz numa juventude sem sobressaltos para além de uma mudança de voz tardia e de uma barba inexistente, entusiasmava-me a aventura, expressão que em mim tem uma dimensão muito estranha, ainda por explicar. Não ia à procura de nada, talvez encontrasse qualquer coisa.

O meu segundo desejo de fuga de casa surge muito mais tarde, quase em cima dos 50, num ano particularmente difícil pelo número de mudanças radicais. Aí sim, a demanda tinha um objecto: a paz, o silêncio interior, talvez mesmo a solidão que imprimem as multidões estranhas, como diria o Eça. Durante semanas imaginei tudo, vi tudo, entusiasmei-me com tudo. A aventura não era a d' O Fio da Navalha dos meus 18 anos, mas a do mesmo romance, 30 anos depois. A aventura era a do espírito - talvez mesmo a da alma. 

Não cumpri nenhuma fuga, vencido por (in)capacidades várias. Talvez me reste, ao contrário de Tolstoi, e se a isso for impelido, fugir não saindo do mesmo sítio. Afinal, fugir de casa não implica obrigatoriamente um comboio, um avião ou uns pés andarilhos que nos levam de A para B. Posso ficar quieto na procura de alguma coisa, que já fugi de casa.

JdB 

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