11 março 2016

Gula *

Levantava-se sempre pelas seis horas, qualquer que fosse a estação do ano. Era rápido no banho, no café e na torrada e saía a correr, porque havia que dar o pequeno-almoço à comunidade de idosos que vivia perto de si numa moradia que o tempo, a humidade e as desavenças familiares tinham arruinado parcialmente.

Pela hora de almoço sentava-se frente a uma sanduíche e a um sumo natural e redigia cartas, preparava balancetes, desenvolvia projectos e planos de negócio, gizava cronogramas com um rigor relojoeiro. Era o seu voluntariado em prol de uma associação de deficientes à qual se ligara por via do filho de um colega de faculdade.

Ao fim da tarde, quando o bulício da cidade anunciava o regresso a casa, Henrique ia distribuir jantares aos sem-abrigo a quem conhecia os nomes, as doenças e os passados – porque os futuros eram um exercício difícil de adivinhação. Quando o relógio da igreja onde dava catequese aos domingos assinalava a meia-noite, o jovem economista ainda arranjava tempo para navegar na internet – não nas redes sociais como fazia meio mundo, mas nos sites oficiais, procurando um programa comunitário, um prémio, um fundo, uma ajuda financeira. De facto, as crianças em risco mereciam-lhe toda a atenção.

Foi numa dessas noites frias e chuvosas, quando distribuía uma sopa de legumes fumegante a quem vivia na rua embrulhado em cartão canelado, que conheceu a Carolina. Trocaram um olhar breve, carregado daquela cumplicidade que une quem se dedica à caridade. As mãos tocaram-se fugazmente quando se organizaram para entregar tabuleiros, recolher canecas vazias, distribuir um par de meias quentes.

Três semanas depois Henrique dirigia-se às avenidas novas onde, num terceiro esquerdo elegante e discreto, vivia a Carolina, uma licenciada em Direito e especialista em fiscalidade num escritório de renome. Já se conheciam minimamente, tinham trocado experiências e opiniões sobre a solidariedade, a vacuidade das vidas, o egoísmo das opções, o serviço ao próximo, a importância do combate à pobreza e à exclusão.

Mas o jantar de hoje tinha um outro fim, mais carnal, mais afectivo, mais erótico. Afinal, eram dois adultos livres, solteiros, independentes, que se juntavam para gozar da companhia mútua e de uma noite previsível de amor.

Carolina estava deslumbrante, vestida com uma roupa que assentava tentadoramente num corpo que, não sendo perfeito, provocava a inveja de muitas colegas e o desejo de inúmeros clientes. Após o jantar sentaram-se num sofá e, pouco tempo depois, enroscavam-se num beijo longo, sensual, húmido, carregado de erotismo. Henrique correra-lhe o corpo com as mãos e ela entregara-se sem restrições, ambicionando também uma noite que se prolongasse sem fim.

Espera, dissera ela com a roupa semi-desabotoada, deixa-me por música e acender umas velas. Levantou-se mas deixou-lhe outro beijo ardente, sentindo-lhe as mãos sem recuo.

Baixou as luzes, acendeu uma velas e colocou um disco na aparelhagem. Tinha-lhe dado as costas e lentamente – muito lentamente – tirara todas as peças de roupa enquanto Joe Cocker cantava, na sua voz característica, you can leave your hat on... A fiscalista estava integralmente nua e rodou lentamente, antevendo a emoção que provocaria no seu namorado ao revelar-se por inteiro – e pela primeira vez.

Henrique, o homem que servia os pequenos-almoços aos idosos, que construía business plans para associações de deficientes, dava catequese, distribuía sopas aos sem-abrigo e investigava fundos comunitários para crianças em risco dormia profundamente, com a boca ligeiramente aberta e uma mão solta de onde se penduravam uns óculos periclitantes.

Sabes qual é o teu mal, Henrique? - afirmou Carolina num monólogo frustrado, enquanto calava o Joe Cocker, apagava as velas e cobria uma nudez que só ela via – é que tu não fazes caridade. Tu sofres é de gula. E isso não é um pecado?

JdB

* publicado originalmente a 26 de Abril de 2010

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