30 maio 2016

Vai um gin do Peter’s?

Quantos óptimos rockers musicaram letras que só colhem, porque deram pretexto a óptimas árias e orquestrações? Raros são os músicos talentosos que exigem qualidade equivalente no texto. Maria Betânia, Bob Dylan, Bono são honrosas excepções, mas há mais alguns, também dignos de nota. Por exemplo, o Boss, que até nas letras costuma ser rigoroso e inspirado.

O “mito urbano” do americano banal, patriótico, terra-a-terra que se lhe colou à pele está longe de corresponder à realidade, creio, da mesma forma que é pura ilusão achar que a aura casual chique que transborda de Steve McQueen é 100% espontânea e inata. Longe disso, apesar de num e noutro haver boa dose de verdade nessas percepções tão generalizadas.

Indo ao caso do músico: a normalidade em Bruce esconde um equilíbrio e uma sabedoria de vida que nada têm de comum. Aliás, toda por junto: a sua postura bem saudável é uma raridade, mais ainda no meio sombrio e decadente do rock, onde ele navega com uma perícia e alegria incríveis. Também o seu realismo e gosto pela vida são animadamente confundidos com um estilo terra-a-terra. A sua insólita combinação de lucidez & extrema simplicidade passa igualmente despercebida, ficando apenas a imagem do tipo pacato e mediano, que talvez se contente com pouco. O simples facto de a lucidez não o fazer resvalar para o cinismo nem para a mordacidade, antes lhe inspirarem ternura pelo próximo, convenhamos que não é frequente.

O segredo do Boss é que tudo lhe sai agradável, harmonioso e cheio de fluidez, como se fosse fácil. Cai-se na ilusão de achar que está ao alcance de qualquer um. Mas, basta revisitar as características que lhe estão acopladas para perceber que não quadram nadíssima com as estrelas pop. Que ele é, ainda por cima, como “boss”. Recapitulando, ser: saudável, simples, um puro, recusar estratosferas para ficar próximo do mais banal dos seres humanos, meigo, fiável, generoso, de irreverência soft… Mais parece o manual do escuteiro modelo do que o retrato de um artista de palco, que ganha a vida a galvanizar multidões.


Bruce Springsteen | Lisboa | 19.5.2016 | © 2016 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Os títulos dos artigos escritos sobre o Boss, a propósito da sua recente estada em Lisboa, no Rock in Rio, explicam bem como é um fenómeno atípico no universo do show-bizz. Cito alguns: «Bruce Springsteen é um ‘profeta bíblico’», «Bruce Springsteen: o macho sensível que nunca falha», «A teologia de Bruce Springsteen» ou ainda «o último inocente do Rock» segundo a Time que fez dele capa, em 1975.

Segue-se o artigo de título mais insólito, porque incide melhor sobre a carga poética e nostálgica do Boss, que só a sua alegria profunda e a gratidão pela vida explicam por que se empenhou com esmero em dar ritmo e salero a uma obra que se poderia ter ficado por baladas simpáticas para entreter. Mas não. Sempre generoso, Bruce impregnou-as de vitalidade. Por isso são tão contagiantes. Como aperitivo ao artigo, aqui vai uma dessas músicas onde tudo se entrelaça com ousadia e densidade, numa harmonia imprevista – The River:



«A teologia de Bruce Springsteen

Dizer que Bruce Springsteen é o rock é repetir preguiçosamente apenas o óbvio. Bruce é, sim, um visionário, um poeta, o grande narrador do romance americano. No conjunto da sua obra pode detetar-se uma indecisão entre versos a abarrotar de imagens abstratas, flashes picados sobre paisagens irreconhecíveis e golpes de pendor narrativo, que nos trazem histórias com uma precisão idêntica à da luz que os mineiros usam para escorregar fundo na escuridão. Numa coisa e noutra, porém, assistimos ao mesmo prodigioso trabalho de linguagem, à mesma sucessão oceânica, ao realismo solto por instinto como a lembrar-nos que ele é um rocker, claro, mas também um sobrinho de Walt Whitman, de John Steinbeck ou de FlanneryO’Connor.

A quem pareça excêntrico um título como este, “A teologia de Bruce Springsteen”, o que pensará quando descobrir, disseminado por várias geografias, a existência de um extenso repositório de ensaios teológicos sobre o assunto! E textos que vêm a lume não em micropublicações para fanáticos, mas em periódicos indiscutíveis como o “Theology TodayJournal”, da Universidade de Princeton, ou “Civiltà Cattolica”, a mais importante e icónica revista dos Jesuítas. Que interesse tem Bruce Springsteen deste ponto de vista? Há o informe biográfico, claro. As raízes irlandesas, a educação familiar, a escola católica em criança, o imaginário bíblico transmitido com naturalidade pelo contexto cultural, a rutura com esse mundo e um reencontro reconfigurado mais tarde, já com uma dicção ardentemente singular, mas regressando às referências religiosas de origem como gramática para exprimir isto que somos sobre a terra. Entalados no quotidiano urbano mais cru ou perdidos nos bosques, entre a infâmia, o sonho e a raiva, os protagonistas das canções de Bruce ganem a fome de resgate, a espera por aquele que os poderá livrar do mal. Ao mesmo tempo que declamam as suas (as nossas) minúsculas histórias de amor como monumentais epopeias de graça e redenção.

Penso que não interessa tanto catalogar religiosamente o universo do Boss quanto sentir nele a inclassificável trepidação de Deus. Lembro-me de várias passagens, onde a inquietude desenha a linha de fogo de uma salvação desejada, mesmo se não atingida. Penso no álbum “The River“ (1980), quando Bruce descarrega em labaredas lentas este fragmento de oração: “Quero que Deus me mande uma palavra/ mande uma coisa qualquer que eu sinta medo de perder”. Ou em “Nebraska” (1982), ao volante numa noite de chuva pedindo que alguém escute o grito: “livra-me do nada”. Ou em “Tunnel of Love” (1987), com o coração estilhaçado pelo fim de um amor, mas ainda assim disposto a transformar o drama em invocação: “Esta noite a nossa cama está fria/ Perdi-me na opacidade do nosso amor/ Deus tenha piedade do homem/ Que duvida daquilo que é seguro”. Nesse disco, Springsteen canta que uma parte dele tende a fazer coisas que ele próprio não entende. E as expressões que usa não estão longe do lamento de São Paulo na Carta aos Romanos: “Que miserável homem eu sou! Quem me livrará deste corpo de morte?” (Rom 7,24).

Sobre a luz, Bruce terá algo a contar mais tarde na coletânea “Lucky Town” (1992), quando a alegria da paternidade o empurrar para o verdadeiro salmo jubiloso que é a canção ‘LivingProof’: “Uma noite de verão num quarto às escuras/ entrou uma parcela mínima da luz eterna do Senhor/ gritando como se tivesse engolido a lua acesa/ Nos braços da sua mãe era toda a beleza possível/ Como as palavras que faltam a uma oração/ que não serei capaz de inventar”. Mesmo se no disco seguinte voltem a morder as velhas dúvidas: “Meu Jesus, o teu amor misericordioso e a tua piedade/ esta noite, perdoa-me, não conseguem encher-me o coração”. Escrever o poema de Deus para apagar o poema de Deus. Apagar o poema de Deus para escrever o poema de Deus. Ou, como ensina o mestre Bruce Springsteen, “it takes a leap of faith to get things going

José Tolentino Mendonça,  na revista Expresso de 14-05-2016


Sobre Bruce, logo depois do concerto, a 19 de Maio

«É um cowboy do asfalto. Um profeta bíblico. Um aborígene que vem até nós descendo o rio na sua jangada. Um sonhador insone. Um soldado cheio de ferimentos, a maior parte deles incuráveis, dos combates do amor. Um vigia da alegria e dos seus abismos. Um narrador para a solidão dos homens e para a invencível esperança. Ele é tudo isso. E também uma central alquímica de altíssima voltagem, uma rebentação de vida que não resigna, um incrível fenómeno estelar em expansão.

A noite é um veículo inventado para que o contrabando dos sonhos se dê. Oiçam-no a ele. A noite fala um a língua de veludo e de fogo. Oiçam-no. A noite é uma dança e um duelo. A noite deflagra com a sua matéria brilhante. Oiçam-no ainda. A noite é o espinho cravado na carne e, ao mesmo tempo, a rosa que flutua pelos séculos. Bruce Springsteen, o patrão da noite, sabe do que fala».

José Tolentino Mendonça


«Macho, sim, mas com sensibilidade. (…)  Springsteen (é) a força controlada, a energia brutal que nunca acaba em descarga eléctrica, comboio a alta velocidade que nunca sai dos carris. (…) A mistura de realismo e inocência, tal como a ideia de que conhecer o lado negro da vida não conduz necessariamente ao cinismo, é uma virtude americana e talvez explique por que razão canções com letras tristes como “Glory Days” ou “Born in the USA” sejam treslidas (ou tresdançadas) como hinos de alegria, marchas patrióticas. Há nelas, apesar da mensagem sombria, um invencível optimismo, uma inocência que não pode ser corrompida (...).»

Bruno Vieira Amaral (BVA) in observador.pt


Num mano-a-mano com outro dos que pensa muito bem naquilo que canta, Bruce acompanha Bono num dueto memorável neste gospel actualizado, saído do repertório dos U2 – I Still Haven't Found What I'm Looking For. Concerto em Madison Square Garden:


Intui-se, ao ouvir a sua voz quente, vigorosa, risonha, incansável, que Bruce gosta das pessoas, sentindo-se que canta talvez mais por nós do que por ele! Por isso, lança-se em concertos infindáveis, espectaculares, entregando-se com magnanimidade, sem artifícios. No fundo, em contracorrente, resulta num «homem real em época de máscaras», como observa BVA. Até nisso é autêntico e corajoso. Nada dos medos de desiludir, de envelhecer, de se esgotar. Sabe que a Arte lhe vem de dentro e, como a recebe de graça, faz questão de a partilhar como um dom. Tudo muito invulgar, em Bruce.

Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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