16 junho 2016

Poemas dos dias que correm

O Poeta Pede a Seu Amor que lhe Escreva

Meu entranhado amor, morte que é vida,
tua palavra escrita em vão espero
e penso, com a flor que se emurchece
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem a sombra conhece nem a evita.
Coração interior não necessita
do mel gelado que a lua derrama.

Porém eu te suportei. Rasguei-me as veias,
sobre a tua cintura, tigre e pomba,
em duelo de mordidas e açucenas.

Enche minha loucura de palavras
ou deixa-me viver na minha calma
e para sempre escura noite d'alma.

Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

***

O Cúmplice

Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos. 
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta. 
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira. 
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno. 
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo. 
O meu alimento é todas as coisas. 
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo. 
Tenho de justificar o que me fere. 
Não importa a minha felicidade ou infelicidade. 
Sou o poeta. 

Jorge Luis Borges, in "A Cifra" 
Tradução de Fernando Pinto do Amaral 

***

A um Jovem Poeta

Procura a rosa. 
Onde ela estiver 
estás tu fora 
de ti. Procura-a em prosa, pode ser 

que em prosa ela floresça 
ainda, sob tanta 
metáfora; pode ser, e que quando 
nela te vires te reconheças 

como diante de uma infância 
inicial não embaciada 
de nenhuma palavra 
e nenhuma lembrança. 

Talvez possas então 
escrever sem porquê, 
evidência de novo da Razão 
e passagem para o que não se vê. 

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança" 

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