03 junho 2016

Textos dos dias que correm

Llya Rypin, The Raising of Jairus' Daughter, 1871

Um pai e a sua criança ao encontro de Jesus

Para os antigos romanos, o que um pai experimenta diante do corpo morto de um filho é a única “iustus dolor”, isto é, a dor plenamente justificada, porque o acontecimento que o causa vai contra a lógica da natureza. É um caso que se apresenta também nos Evangelhos, a partir do próprio Jesus que morre diante da sua mãe, para não falar do que é narrado da viúva de Naim.

Outro exemplo deixa rasto na história que nos contam os três Evangelhos sinóticos [Mateus, Marcos, Lucas] e que diz respeito ao chefe de uma sinagoga, de nome Jairo (seguimos a narração de Marcos 5, 21-43). A sua vida é atravessada por uma tragédia: a sua filha de doze anos está moribunda.

A sua única e última esperança é confiar-se àquele rabino de Nazaré, Jesus, de quem se dizem coisas maravilhosas e prodigiosas. Reevocamos este episódio para realçar a galeria de personagens nos quais a família se encontra com a misericórdia.

A imploração do pai está cheia de sofrimento e confiança: «A minha filhinha está a morrer: vem impor-lhe as mãos, para que seja salva e viva!». Jesus acolhe desde logo este apelo extremo, que, todavia, parece agora desmentido pelos factos. Nas proximidades da habitação de Jairo eleva-se já o típico vozear e os choros que acompanham um acontecimento trágico, sobretudo nos hábitos orientais. Mas a notícia não admite réplica: «A tua filha está morta. Porque é que ainda incomodas o Mestre?».

Impressionante e provocadora é a resposta de Jesus, tanto mais que é acolhida com ironia e derisão. «A criança não está morta, mas dorme». Diante de Cristo a morte transforma-se num sono que pode ser “despertado”: não é por acaso que nos Evangelhos a ressurreição é descrita com o verbo grego do “despertar” de um sono profundo e mortal.

Jesus faz-se acompanhar só pelos pais e por três apóstolos, Pedro, Tiago e João. Pode imaginar-se o silêncio atónito que acompanha aqueles momentos e o ato simples mas delicado de Jesus: «Tomou a mão da criança». O silêncio é rompido por duas únicas palavras pronunciadas com ternura, ou talvez apenas sussurradas na língua originária do próprio Jesus, o aramaico: “Talità kum”, «menina, vamos, levanta-te!».

E eis o prodígio do amor que dá a vida a uma criatura e espalha o espanto e a alegria em torno de si: «Logo a rapariga se levantou e caminhava». Mas há ainda um toque de delicadeza que é introduzido por Cristo: diz para lhe darem de comer, preocupado como um pai pela fragilidade física da pequena que saía daquele “sono” profundo.

A figura de Jesus emerge na sua totalidade, aureolada pelo seu poder, certamente, mas também pela sua delicadeza e doçura misericordiosas, tornando este episódio inesquecível, como é testemunhado pela impressionante interpretação livre que dele fez um grande realizador dinamarquês, Carl Theodor Dreyer, no seu filme “Ordet”, “Palavra”, rodado em 1955.



Card. Gianfranco Ravasi 
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Famiglia Cristiana"
Trad.: Rui Jorge Martins 
Publicado aqui em 01.01.2016

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