25 julho 2016

Vai um gin do Peter’s?

Num cruzamento invulgar –  entre antigo e contemporâneo, oriental e ocidental, ortodoxo, católico e protestante –  foi recriado por uma artista sueca um dos ícones mais conhecidos e milenares da Igreja Ortodoxa, que está exposto na capela do Seminário de Nossa Senhora da Conceição, em Braga: 

Ícone bimilenário, que inspirou o conjunto artístico de Braga

Sendo o Seminário português dedicado à Mãe de Jesus, percebe-se que a escolha recaia sobre uma imagem ligada à tradição Eleousa, ou "Terna", ou da Misericórdia, em que Maria encosta o Filho a si, enquanto nos fixa com um olhar meigo, como Mãe da Humanidade. Por isso, este ícone é também conhecido no Ocidente por Nossa Senhora da Ternura ou da Misericórdia.

Reza a lenda que o ícone original, hoje religiosamente guardado em Moscovo numa capela da Galeria de Arte Tetryakova, terá sido pintado pelo evangelista Lucas e, de Bizâncio, levado pelo príncipe Andrei Bogolyubskiy para a cidade de Vladimir, no século XIII. A devoção espalhou-se rapidamente pelas cidades vizinhas até se estender a todo o país, ajudada pela catadupa de milagres que lhe são atribuídos. Juntamente com o ícone de Kazan, perfaz a dupla de ícones marianos com maior relevância na História da Rússia, especialmente devota de Maria. 

A pintora Lisa Sigfridsson(1)  procurou reproduzir a antiquíssima técnica da têmpora, que preserva melhor o brilho e o cromatismo das cores. Sobre madeira de tília, optou pela máxima austeridade, circunscrevendo-se às três cores primárias: magenta (ou vermelho), azul e amarelo. Além de estilizar o original, a sueca desdobrou o original em telas complementares, formando um quinteto pictórico com uma simbologia própria, explicada a seguir:

Fotografia: Joaquim Félix 

O primeiro, no extremo esquerdo, representa a imensidão monocromática do cosmos, a representar o céu profundo e misterioso habitado por Deus, mas de uma escala demasiado agigantada para o ser humano.

No segundo, o gesto meigo da Mãe ampara o Pequenino, sintetizando o epicentro da mensagem cristã, onde o Amor, a Caridade, é o próprio nome de Deus.

No terceiro, o céu estrelado representa a envolvente mais próxima do planeta, como que evocando aquela noite santa em que as estrelas iluminaram o escuro para louvar um Bebé que escolheu nascer num lugar perdido do poderoso Império Romano. 

O quarto dá destaque ao gesto maternal de Maria, fazendo zoom sobre a mão bondosa onde o Filho repousa em segurança. Foca-se numa mão de mãe, ao alcance de todos os filhos.

O quinto replica uma das duas flores do manto de Maria, no ícone antigo. A escolhida foi a que está junto ao coração – símbolo do Amor – logo abaixo da mão com que Jesus agarra a Mãe. No original, a segunda flor encontra-se na fronte, sinalizando o poder da sabedoria e da intuição.



Num país mariano como o nosso, que coroou Nossa Senhora Rainha de Portugal (séc. XVII), é significativo inspirar-se no património da arte sacra de outro país mariano, de raiz ortodoxa. As associações à Rússia ainda se adensam mais, se recordarmos a alusão explícita na mensagem de Fátima, em que Maria encomenda a conversão do maior país do mundo a três pastorinhos de pouca idade e parca cultura. Compreensivelmente, nem perceberam do que se tratava, empenhando-se apenas em cumprir, como podiam, o pedido encriptado da Virgem. Bastou a humildade e extrema dedicação, iluminadas pela fé, para as três crianças porem Portugal a rezar pela URSS, desde 1917 até ao desmoronamento do império bolchevique, no final dos anos 80. Por isso, o Papa João Paulo II lembrava que, enquanto o mundo parecia sucumbir ao poder do Exército Vermelho e à força da ideologia comunista, na Cova de Iria gente anónima e remota limitava-se a seguir a recomendação de Maria, confiando que os tempos e os meios do Céu encontram saídas que escapam à imaginação e à lógica humanas. Felizmente para nós, há uma Criatividade benigna, que nos baralha com soluções imprevisíveis e certeiras, daquelas em que o Indiana Jones tentou especializar-se.  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

 (1)  Página da pintora: http://www.lisasigfridsson.se/?page_id=1980

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