18 outubro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Aos 86 anos, Clint Eastwood volta a lançar um filme para dar a conhecer o melhor da humanidade: aquele cidadão anónimo capaz de feitos heroicos, que irrompem de um dia-a-dia levado na humildade mais prosaica e comum. O perfil do anónimo que é, afinal, o oposto das figuras públicas e dos ídolos que arrastam milhares de fãs nas redes sociais, pelas razões mais fúteis e irracionais. Em contracorrente, o realizador adopta outros critérios para consagrar heróis entre quem faz o bem aos seus semelhantes, simplesmente por magnanimidade intrínseca. 

Em Portugal, foi traduzido por «Milagre no rio Hudson»(1), repescando os títulos que encheram os tabloides americanos e do mundo, quando noticiaram comovidos e espantados o caso único da amaragem de um avião comercial no rio de Nova Iorque, às 15h31 de 15 de Janeiro de 2009. Zero mortos, zero feridos, apesar de as estarem turbinas destruídas e no trajecto da descida o airbus já ter sobrevoado a ponte George Washington a menos de 270m de altitude! Chamaram-lhe exactamente assim: the miracle on the Hudson e assim ficou cunhado, para sempre, aquela acrobacia aeronáutica. O realizador preferiu tomar para título o diminutivo por que o salvador das 155 pessoas a bordo é conhecido entre os familiares e amigos: «Sully».

Clint lembra um pouco o escritor Ernest Hemingway (1899-1961) ao comentar a excelente matéria-prima que tinha conseguido trazer para o livro que lhe valera o Nobel, em 1954 – «O Velho e o Mar». Encarara-o como uma espécie de dom: «A sorte foi eu ter um homem bom e um bom rapaz e o facto de ultimamente os escritores se terem esquecido de que isso ainda existe. Além do mais, o oceano é tão digno da literatura como um homem. Por isso tive sorte, nesse aspecto.» É preciso perceber que Hemingway concebia a escrita como uma missão maior, de alcance sagrado e até sacrificial: «(para escrever) o que tem a fazer é sentar-se em frente à máquina de escrever e sangrar.»(2)

Sem sangue mas com o mesmo intuito de mostrar o que vale a pena, Eastwood mantém-se fiel à sua missão de dar a conhecer os heróis improváveis. Os que suplantam as divergências mais arreigadas, conseguindo agregar as boas vontades de todos os quadrantes. Homens capazes de acordar nos seus semelhantes a boa vontade, levando à letra os versos da balada Por ti seré mejor de lo que soy

Tom Hanks encarna na perfeição a figura do piloto mais fiável da América, Sullenberger, que aparece no final do filme, revelando um olhar mais bondoso e suave do que o conseguido por Hanks. 

O argumento baseia-se no livro autobiográfico de Sully, escrito no ano do incidente sobre o Hudson. O título diz muito sobre a forma como encara a vida e o próximo – «Highest duty: My search for what really matters». Das 155 almas a bordo, segundo refere, preocupa-se até ao final em as resgatar, uma a uma. What really matters. Cumprindo à risca o que lhe competia (mas que nem todos praticam), é o ultimo a entrar no bote salva-vidas. É também expressivo o desabafo comovido da mulher, depois de o piloto lhe telefonar e de ligar a televisão para apanhar os pormenores da estrondosa notícia: «Oh my God... I just realized there were a hundred and fifty-five people on that plane and you were one of them!» Não fora possível captar a dimensão do acontecimento no tom simples e modesto do marido, só a querer poupá-la a sustos escusados.

Com arte para contar histórias, Clint prende-nos ao longo de uma hora e meia para narrar o impacto de um mini-voo de 6 minutos, desde o aeroporto nova-iorquino de La Guardia até… ao rio, logo depois de sobrevoar os arranha-céus de Manhattan. Já sem motores, o filme revê, em momentos importantes, a realidade nua e crua: os incríveis 207 segundos em que urge planear e executar uma aterragem rápida, evitando despenhar-se contra a cidade e provocar um número incalculável de mortos, entre os do ar e os da terra.

Tudo se precipitara quando um bando de gansos-canadianos colidiu com o avião, pouco depois de descolar, danificando as duas turbinas. Estava consomado o mais improvável dos acidentes numa tarde gélida de Inverno e logo num dos aeroportos do país mais tecnológico e rico do mundo. Porém, depois da parte negativa, entra em cena o lado benigno da realidade, num antídoto perfeito a tudo o que antes correra mal: aos comandos está um piloto híper competente e honesto, com 40 anos de experiência na Força Aérea norte-americana e, mais tarde, na avião comercial, coadjuvado por um co-piloto também muito capaz – Jeff Skiles, bem interpretado por Aaron Eckhardt. Estes são os factos com nomes reais a quem o filme faz jus, reconhecendo a estranheza de se cruzarem na vida, permitindo um desfecho incrível. Tão incrível, que acabou por ser interpretado pela maioria nessoutra dimensão menos visível, mas que melhor exprime o inexplicável – o milagre. Milagre a vários níveis, sendo o agente mais colaborante o fantástico «factor humano», segundo lhe chamou Sully. 

A somar ao sucesso da amaragem, seguiu-se um contínuo de novos sucessos na evacuação e no resgate, que só correm bem nas curta-metragens que passam a bordo antes da descolagem. Cientes do inusitado, a tripulação foi integralmente condecorada com a Medalha de Mestre da Guild of Air Pilots and Air Navigators, por se considerar que aquela «aterragem de emergência e evacuação, sem a perda de nenhuma vida humana, é uma conquista heroica e única na aviação». Sim, fez-se história na América e no mundo. Precisamente no coração da cidade, ferida por aviões-kamikazes no 11 de Setembro, celebrava-se agora uma epopeia aeronáutica de final feliz. Parecia uma desforra gloriosa e muito cívica. O melhor da humanidade viera ao de cima. 

Imagem real do Airbus A320 a flutuar no rio Hudson.

A somar às proezas da centena e meia a bordo, somou-se a eficiência e a rapidez de actuação das autoridades e de botes de todos os tamanhos. Os números são auto-explicativos: perante a iminência do afundamento do airbus, em apenas 24 minutos, 1200 pessoas mobilizaram-se para trazer os 155 para terra enxuta. A serenidade dos resgatados nas asas do avião é, por si só, digna de assombro, como se dessem por adquirido que, depois de rasarem a morte, a possibilidade de viver lhes tinha sido restituída.  

O testemunho dos passageiros ajuda a dar a noção do que ali esteve em causa. Um deles, Frederick Berreta, publicou um livro sobre o impacto do mini-voo na sua vida, intitulando-o de: «O voo da fé - O meu milagre no rio Hudson». Na net, há um manancial de informação com imagens e entrevistas de arquivo, algumas das melhores compiladas num artigo publicado no Observador (3).

Foi a partir desta matéria-base poderosa que Clint compôs, em filme, um hino ao heroísmo de protagonistas desconhecidos, só revelados nas situações extremas, espalhando o bem em redor. Recupera-se alguma fé no ser humano.  

É também a América dos simples que entra em acção: certeiros a reconhecer os heróis, desde que surjam no radar dos media, são generosos a colaborar e a recordá-los.  

No filme, há ainda um explícito confronto com o lado sórdido de uma corporação – a entidade reguladora – aqui no seu pior, movida pelos interesses obscuros das seguradoras. Sempre o vil metal. Terão descido tão baixo? Ou a vantagem narrativa de arranjar um conflito urdido nos bastidores e dar um rosto ao mal foge à parte factual dos acontecimentos posteriores? Para a fluidez do argumento e a força da mensagem é, ainda assim, de somenos a maior ou menor veracidade desta luta desigual, em que Sully voltou a vencer, trazendo à tona novas riquezas da sua personalidade. 

https://www.youtube.com/watch?v=ecrhK_i2YA0

Entre os muitos fãs do filme, com críticos de cinema incluídos, é comum referir que o mérito do realizador é deixar a história contar-se a si própria, sem atrapalhar. Confirma-se a sorte que Hemingway também exaltava, por um homem bom lhe ter aparecido no livro. No filme, o bom homem ainda contagia uma multidão, para cima de um milhar, que tornou possível o êxito de uma operação de alto risco. Um feito histórico que uniu toda a América. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
 (1) FICHA TÉCNICA

Título original: «Sully»
Título traduzido em Portugal: «Milagre no rio Hudson»
Realização: Clint Eastwood
Argumento: Todd Komarnicki, baseado no livro autobiográfico no piloto Chesley Sullenberger -- «Highest Duty: Highest duty: My search for what really matters».
Produzido por: Clint Eastwood, Frank Marshall, Allyn Stewart e Tim Moore
Banda Sonora: Christian Jacob; the Tierney Sutton Band
Duração: 96 min.
Ano:       2016
País: EUA

        Elenco:
Tom Hanks (Sully)
        Aaron Eckhart (co-piloto Jeff Skiles)
        Laura LinneY (a mulher de Sully)

        Local das filmagens: Nova Iorque /EUA

(2)  Citação no original: «There is nothing to writing. All you do is sit down at a typewriter and bleed». 

 (3)  http://observador.pt/2016/09/08/milagre-no-rio-hudson-um-heroi-americano-no-ar-e-em-terra/   



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