Tem
estado em cartaz o documentário dedicado aos anos fulgurantes da carreira do
grupo que inaugurou os mega-concertos em estádios de futebol e a perseguição
louca dos fãs, atirou a produção discográfica para uma escala industrial e
tornou-se porta-voz de uma juventude que ganhava consciência de classe, nos
anos 60: «The Beatles: Eight Days A Week
– The Touring Years» (1).
Fizeram história e mudaram a história. O realizador promete novidades em
primeira mão: the band you know, the
story you don´t, pois teve acesso ao arquivo infindo da Apple Corps Ltd.,
fundada pelos próprios Beatles em 1968, a vídeos de amadores e a entrevistas
com famosos, além da consultoria dada por McKartney, Ringo e as viúvas de
Lennon e de George Harrison.
Não
será demais afirmar que a banda converteu o rock & roll na linguagem da
contestação juvenil, popularizando-o e levando-o às quatro partidas do mundo.
Introduziram um novo elemento na cultura: o pop.
Em entrevista à Rolling Stones americana, o realizador Ron Howard revela também
o contributo do Beatles para a mudança de mentalidades: «Aquele período de seis anos (de 1960 a 1966) traz uma impressionante transformação em termos de cultura global e
nesses quatro extraordinários indivíduos, que foram ao mesmo tempo génios e
seres extremamente fáceis de se identificar». Um dos editores da Rolling Stone considerou-os
o Picasso da música, pela inovação que trouxeram a esta expressão artística(2).
De
1962-63 a 1966, assistimos ao irromper do fenómeno vulcânico conhecido por beatlemania, depois de o manager de
quase trinta anos, Brian Epstein, os descobrir nas profundezas do bar nocturno
de Liverpool, o Cavern Club, e os
trazer para os melhores estúdios e palcos à luz do dia. Começou por lhes tirar
os blusões pretos de má qualidade e vesti-los no mais reputado alfaiate da
cidade, aplicando-lhes uma farda semelhante à dos profissionais da City. Corte
de cabelo à tigela, igual para os quatros, para unificando a imagem do
quarteto. Curiosamente, em vez de se sentirem espartilhados no fato e gravata,
aqueles miúdos, a rondar os 17 anos, reconhecem que a farda ajudou a selar o
grupo. Deu-lhes espírito de corpo, fazendo-os sentir-se um gigante (dizem) com
4 vozes e oito braços à guitarra e à bateria.
Percorremos,
com eles, o planeta, para 166 actuações por 90 cidades de 15 países, até à
última tournée daqueles anos frenéticos, em Agosto de 1966. Culminou com uma
enchente num estádio, pois não havia espaço maior nos EUA para receber todos os
que exijam assistir ao concerto. As provas do sucesso são óbvias: foram a banda
estrangeira com maior penetração no renhido mercado norte-americano; arrecadaram
o grande prémio da música, o Grammy, 10 vezes, além de inúmeros outros
galardões internacionais; assinam o maior número de hits no topo das
audiências. Ainda por cima, corre contra eles a breve longevidade do grupo.
Para
muitos, a canção de amor mais bonita do rock é do seu repertório – «Something» – composta por George Harrison,
também autor da mítica «Let it be»:
https://www.youtube.com/watch?v=3vrnDzOOlCI
O
aspecto mais sublinhado pelo realizador é a repercussão sociológica da sua
carreira, criando um fenómeno de identificação entre juventudes de geografias
bem distantes, mas unidas pela beatlemania, que simboliza também aspirações
comuns. Tudo se mistura, entre o gosto pelo rock, uma atitude livre e a
partilha de um ideário de tolerância, e
de abertura (acreditava-se) a todas as raças, credos, convicções. Contado
na perspectiva da banda, o documentário acompanha o crescimento de quatro rapazes
talentosos e apaixonados por música, capazes de impregnar a sua obra de um novo
sentido de liberdade, de consciência individual e de ânimo, acordando na
juventude do seu tempo a vontade de desfrutar o presente. Sem limites, sem
preocupações. Resultaram, assim, nos detonadores de uma revolução cultural e
social, que se espalhou a uma velocidade sem precedentes. Estreava-se a década
do power flower. Por junto, a aura
dos Beatles suplantou as fronteiras da música para também ter incidência
política.
A
divertida Whoopi Goldberg conta-nos a sua experiência quando os foi ouvir,
ainda em criança, e sentiu orgulho das suas raízes afro, graças àquele grupo
aberto a toda a humanidade. Descobrira os primeiros artistas sem cor
(chama-lhes), maximamente universais. Sim, foram aqueles miúdos de ar gozão e
talvez semi-irresponsável, mas enorme ousadia e talento sem-fim, que vergaram
um dos Estados americanos do Sul, arreigadamente racista, ao recusarem cantar
num espectáculo interditado aos negros. Resolutos e inabaláveis, obrigaram a
organização a abrir a bilheteira a todos. Lennon falou pelos 4, firme e a taxar
a discriminação de ridícula, um puro contra-senso. Se não podiam cantar para
uns, não cantariam para ninguém. Acabou com negros e brancos a sentar-se lado a
lado para entoarem as músicas, a uma só voz, com os seus heróis. Um inédito
naquele
Estado. Abriu-se uma página na história americana, erradicando os concertos
sujeitos a segregação racial, nos poucos sítios em que ainda eram prática
corrente.
Claro
que a histeria também superabundou. Aqueles concertos correspondiam a uma
experiência novíssima, galvanizante, que atraia uma combinação explosiva e
divertida de emoções. Momentos vividos ao rubro. Também com um lado meio
assustador nos gritos descontrolados da multidão de miúdas alucinadas. Alguns
desmaios, muita euforia, berraria desenfreada e uma turba-multa disposta a tudo
para se aproximar dos seus heróis. Um excesso, que McCartney conta como foi
encarado pelo grupo: «Éramos crianças e
estávamos todos bastante assustados». Os finais eram uma dor de cabeça, com
saídas atribuladas, escoltados pela polícia para os proteger do público. Sem se
ouvirem capazmente entre si, à conta da barulheira ensurdecedora dos
espectadores, tocam sempre afinados e 100% sintonizados, comprovando o seu
profissionalismo. Sim, a alegria esfusiante da sua presença em palco não fazia
perceber as horas de trabalho árduo, a ensaiar incansavelmente. Aliás, Paul
relata a quantidade de horas que passam em treinos e em gravações no estúdio.
Estiveram vários anos sem poder tirar férias. Valia darem-se tão bem uns com os
outros, divertindo-se à grande, a quatro. A boa sintonia perpassa nas cenas
filmadas nos bastidores e até nos olhares cúmplices em palco. São os primeiros
a curtir o bom momento. Talvez os únicos a conseguir fazê-lo de forma saudável,
com arte e gosto pela vida a fundir-se harmoniosamente.
A
boa relação do quarteto é das facetas mais interessantes do filme. Em concreto,
o sentido de humor é um poderoso elo de ligação entre Lennon, McCartney,
Harrison e Ringo Starr, aliviando-lhes a vida estafada que o sucesso lhes vai
impondo. Numa das viagens aos Estados Unidos, mal aterram, são atacados por
hordas de jornalistas com idade para serem seus pais. Interpelam um deles com
ar inquisitivo, a perguntar pelo nome. Calhou ser Lennon que, com a maior
desfaçatez e naturalidade, respondeu: Eric,
my name is Eric. Quando um dos jornalistas o volta a abordar, já a chamar de
Eric, corrigiu logo: John, o meu nome é
John. Estava só a gozar. Isto sem
se desmanchar e só para fazer rir os amigos, deixando os media atordoados e
desconfiados, a antever que iriam ser bastante gozados (como foram), sempre em
versão educada.
Interrogam-nos
também sobre temas candentes, curiosos de perceber, através dos Beatles, a
mentalidade da juventude. Com uma espontaneidade agradável, a medida certa de
auto-confiança e manifesta sagacidade, surpreendem os entrevistadores com
opiniões despretensiosas, mas muito atentas à realidade. Nos bastidores, é
interessante ver o olhar cuidadoso e até embevecido do manager, que lhes dá
todo o espaço para protagonizarem o novo espírito que despontava. Percebera que
o mediatismo ganho pela música e um carisma irresistível lhes granjeara uma autoridade
inigualável, que só a eles caberia gerir. Zona sagrada dos quatro, com direito
a tempo de antena para falarem ao mundo, sequioso por ouvi-los. Apesar de tão
novos, souberam não abusar do estatuto.
https://youtu.be/0fFyZzqPDws?t=33
No
filme, há ainda um salto para 1969: quando, num invernoso 30 de Janeiro, o
grupo quis surpreender a capital mais cool da Europa com um concerto não
anunciado. Muito civicamente, como só os britânicos, os transeuntes foram-se
reunindo na esquina do prédio para assistir a uma actuação insólita,
literalmente caída do céu. Outros conseguiram melhor vista, subindo para os
telhados da zona. Batidos pelo vento das alturas, mergulham na música dedicada
por Lennon a Yoko Ono: «Don’t let me down», seguindo-se outros êxitos:
https://www.youtube.com/watch?v=NCtzkaL2t_Y
Com
esta experiência no topo de um prédio, queriam emancipar-se do estúdio e
explorar novas linguagens. Tinham começado por projectar hipóteses mais
fulgurantes, até porque nunca sofriam de falta de imaginação. Cantar no
deserto, ou num antigo anfiteatro romano tunisino, ou a bordo de um barco
estavam na calha. Acabaram por se ficar pela opção mais próxima e caseira,
ainda q.b. original. Mas nem assim resistiram à desintegração, que se
adivinhava. Resistiram, no entanto, ao esquecimento. Mais: nunca pararam de
somar fãs. Muitos já só os conhecem de imagens e sons de arquivo. Mesmo no
teste do tempo continuam em grande, demonstrando enorme actualidade.
Maria Zarco
(a
preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA
Título original:
|
«The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years»
|
Título traduzido em Portugal:
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«The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years»
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Realização:
|
Ron Howard
|
Argumento:
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Mark Monroe e P.G. Morgan (como consultor), com o
apoio das 2 viúvas dos Beatles: Yoko Ono Lennon e Olivia Harrison
|
Produtores:
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Nigel Sinclair, Brian Grazer e Scott Pascucci,
com apoio do vasto arquivo da Apple Corps.
|
Banda Sonora:
|
Beatles, Ric Markmann, Dan
Pinnella e Chris Wagner
|
Duração:
|
2h17
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Ano:
|
2016
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País
|
Reino Unido e EUA
|
Elenco:
|
Paul McCartney (também à data de hoje)
Ringo Starr (também à data de hoje)
John Lennon (só em registos de arquivo)
George Harrison (só em registos de arquivo)
Larry Kane
Whoopi Goldberg
Elvis Costello
Sigourney Weaver,
etc.
|
Local das filmagens:
|
O mundo, nos locais reais das tournées.
|
Site official (nos EUA):
|
http://thebeatleseightdaysaweek.com/us/
|
Consultar outros vídeos e dados interessantes no artigo do Observador:
http://observador.pt/2016/09/15/the-beatles-
eight-days- a-week- os-anos- loucos-dos- fab-four/
|
(2) Citação
original de Robert Greenfield: «(comparing)
the Beatles to Picasso, as “artists who broke through the constraints of their
time period to come up with something that was unique and original ... [I]n the
form of popular music, no one will ever be more revolutionary, more creative
and more distinctive”.»
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