22 dezembro 2016

Da sabedoria popular

Todos os ditados portugueses - e talvez mesmo os que são proferidos em língua estrangeira - são verdade e o seu oposto. Há os que dizem bem de se ser gordo e os que dizem mal de se ser gordo. E há os que fazem o pleno na mesma frase: a gordura é formosura, a magreza é beleza - e fico-me por este exemplo, que a época é de acumulação de calorias. Um pouco como se o povo português não fosse, afinal, tão sabedor quanto isso, ou não se definisse quanto às vantagens ou desvantagens de uma certa obesidade. 

Ora, para efeitos deste post pré-natalino escolhi um provérbio sobre o qual irei discorrer breves instantes: em casa de ferreiro espeto de pau. Significa isto, porque não temos de dar-lhe outra conotação para além daquela que as palavras específicas o traduzem, que em sua casa, o ferreiro, um artesão que trabalha o ferro, faz espetadas (para que mais serve um espeto?) em pau de louro, por exemplo. Pode ser alecrim também, mas não pode ser ferro, nem sequer inoxidável. Assim sendo, e se a sabedoria popular se estendesse a todos os misteres, poderíamos dizer, com igual propriedade, em casa de médico gente doente, ou ainda, em casa de engenheiro civil telhados que caem

Não acontece isso de facto. Em casa dos médicos há gente saudável e em casa dos engenheiros civis os telhados não caem; em casa de um ferreiro também há espetos de ferro, porque têm igualmente o seu encanto na confecção das viandas que vão ao lume. Replicando, em casa dos arquitectos há alçados, em casa dos advogados há contratos legais, em casa dos electricistas não há curto-circuitos em permanência. 

No entanto, há desconformidades neste meu raciocínio, o que acrescenta valor ao mundo. Afinal, nada de mais ingrato do que um texto inabalável, inquestionável, sem uma brecha por onde discordar. Onde está a desconformidade? Na classe dos psiquiatras, dos terapeutas familiares, daqueles outros que se dedicam a aliviar a alma dos que sofrem mediante um pagamento e o desvendar de uma vida e de um passado, que do futuro ninguém sabe. Como dizer, em casa de psiquiatras gente desequilibrada, ou ainda, em casa de terapeutas familiares casamentos infelizes

Um médico sabe tratar as pessoas que estão em sua casa e sabe tratar-se; um electricista arranja candeeiros em casa própria e nas dos outros; um arquitecto projecta uma marquise e um engenheiro sabe construí-la, se por acaso o casal tiver essa valência profissional. Então porque motivo em casa dos psiquiatras há gente com obsessões e desequilíbrios e em casa dos terapeutas familiares os cônjuges discutem o mesmo que no resto dos lares - ou ainda mais? Um médico vê doenças em casa, um arquitecto vê colunas em casa, um electricista vê fios eléctricos partidos em casa - e todos eles aplicam a teoria que aprenderam com os seus maiores, resolvendo minimamente a contento os problemas com que se deparam. E um terapeuta? Não vê crises em casa? Ou se as vê, não aplica conhecimentos para resolver aquilo que é uma espécie de fios descarnados da alma e do comportamento?

Em casa de ferreiro espeto de pau. A frase é bonita e tem ritmo, mas não é por isso que não deixa de ser um disparate parcial, a não ser que a leiamos como uma metáfora. 

JdB

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