13 dezembro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Com o Natal a aproximar-se, vêm a calhar as dicas para presentes. Uma sugestão a ver com a quadra é o filme francês «Les Choristes»(1), que arrecadou os maiores galardões de cinema a nível de banda sonora e seria merecedor do Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, em 2004 (que premiou outro, sobre eutanásia). Música linda, cantada por crianças e com letras que falam de esperança tem sempre a ver com o Natal. Sendo que esta é só a afinidade mais visível com a mensagem natalícia. 

A narrativa começa no presente, porque é o tempo em que já são evidentes os efeitos de um bem perpetrado décadas antes, gratuitamente e sem qualquer resultado à vista. Assemelhara-se a um investimento a fundo perdido, como acontecera a tantos, durante a Segunda Guerra Mundial, que não puderam ver o bom impacto das suas acções. Em seguida, o argumento decorre em flash-back, desfiando o diário do tal fazedor do bem – vigilante e professor, ex-músico (Mathieu) –  para revisitar um passado onde o sofrimento parecia não ter fim para os órfãos pobres da Guerra condenados, por antecipação, a um futuro sombrio e estéril. Sim, a guerra estava ganha. Mas faltava ganhar o pós-guerra.

Recuamos a 1949, ao colégio-orfanato que recolhia os desamparados do conflito de 1939-1945, de certo modo enclausurados numa quinta murada, com um portão onde se lia uma inscrição terrível e de mau presságio: «Fundo do Pântano». O original «Fond de l’Etang» poderia ter inspirado uma tradução neutra, se se optasse pelo termo charco para referir um dos típicos mantos de água lamacenta que superabundam nas quintas com bosques verdejantes. De todos os modos, portões com inscrições evocam, automaticamente, o mais horrendo dos campos de extermínio.

Um bondoso músico no desemprego vê-se forçado a aceitar um emprego sub-qualificado como vigilante num internato perdido no interior de França. As premonições sucedem-se: depois da inscrição da entrada, um rapazinho amoroso aguarda nostalgicamente pelo Sábado, para o pai o levar dali. Desconhecendo os pormenores do caso, o novo vigilante limita-se a consolar o miúdo, explicando que ainda não era Sábado. Calha que Sabbath é o dia santo dos judeus, coincidentemente o dia sonhado para a libertação daquele inocente, também ele –  tal como o povo da Torah e milhões de outros – vítima da Guerra terminada quatro anos antes. 

Apanhado logo em peripécias várias, com armadilhas cruéis, o futuro vigilante percebe o grau de violência que aquelas paredes calam. Autoridades e miúdos rivalizam em agressões mútuas, parecendo ignorar, ou transgredir abertamente, os mais elementares princípios de convivência humana, sem uma réstia de humanidade. Na passagem do testemunho, o seu antecessor é claríssimo: alerta-o para os perigos que representam os alunos mais indomáveis. Ainda alude ao suicídio de um deles, encarando-o como a libertação possível daquele inferno, e mostra um braço com uma longa cicatriz. 

As únicas figuras que destoam deste ambiente dantesco são a criancinha que esperava, ao portão, pelo Sábado (Pepinot) e o enfermeiro-faz-tudo, que adora incondicionalmente os miúdos, como um avozinho, apesar de nem ele ser poupado a emboscadas sanguinárias. 

A técnica revanchista do reitor, sob o lema «action-reaction», dir-se-ia alimentar a espiral de violência. Porém, o desenrolar da narrativa acaba por conferir mais substância àquela figura autoritária e antipática, que se entrincheirara em expedientes defensivos para combater a constante ameaça de a mais leve indisciplina inflamar os ânimos de um bando de miúdos revoltados e sem freios (como é próprio dos mais novos).    

Forrado de paciência e imbuído de pedagogia educativa, Mathieu tenta quebrar a hostilidade das crianças com um sentido de humor certeiro. É incansável, perdoando vezes sem conta, das pequenas às grandes diabruras. Logo numa aula inicial, lança-lhes uma pergunta, que obteve um resultado surpreendente: o que sonham ser em crescidos? Salvo o pequeno Pepinot, inconformado com a morte dos pais, todos escreveram desfechos gloriosos e semi-megalómanos. Nesse horizonte sonhado, transpuseram sem dificuldade os muros altivos e castradores do internato. Era um primeiro passo, algo libertador, como uma semente de esperança atirada para um tempo distante daquela situação desesperante. 

No entanto, a maior brecha naquela teia infernal, entre miúdos guerreiros e um director despótico, foi a descoberta de uma forma de brincar nova: através da música. Sim, um coro seria a primeira experiência de jogo em equipa, onde se empenhariam em funcionar pela positiva, contrariando a rotina viciante de sabotagem e transgressão cega a tudo o que o colégio propunha. O efeito foi brilhante e, independentemente de algum exagero ficcional, encerra uma carga simbólica sempre válida, ao sublinhar o valor das boas causas que semeiam para a geração seguinte. De facto, o coro ofereceu-lhes um hobby saudável e permitiu desencantar talentos escondidos, que abriram uma carreira promissora aos miúdos mais musicais. A brincar, melhorara-lhes o presente e escancarara-lhes um futuro luminoso. 

Os perfis psicológicos em despique são muito distintos, marcados por características fortes que, quando bem orientadas, podem produzir resultados fabulosos, à parte do rapaz perverso, que a dada altura ingressa no colégio. Assiste-se, assim, a um percurso de auto-conhecimento, que se afina e clarifica na exigentíssima interacção entre uns e outros, despontando melhor sob a influência de um educador afectivo e sabedor. Até o orgulhoso reitor se rende ao ambiente algo distendido que o coro provocara nos miúdos forçando, à sua maneira (algo sobranceira e híper cioso da sua autoridade), uma entrada no jogo de futebol que decorria no recreio. Inédito, até porque teve de suplantar a humilhação de ser atingido por uma bolada, em cheio na cara, mal pôs o pé no recreio.

Quando tudo parecia fluir de vento em popa, uma guinada no argumento deita por terra os pequenos sucessos conquistados a pulso, a ponto de Mathieu ser expulso e impedido de se despedir dos seus amigos-alunos. Mas o que agora assomava como derrota suprema, acabou por facilitar a resolução de irregularidades e injustiças demasiado arreigadas. São tocantes os momentos finais em que o professor se afasta do edifício desgostoso com aquele desfecho infeliz, até ser alvo de uma chuva de aviõezinhos de papel com mensagens deliciosas dos miúdos. Afinal, deixara boa memória. Ainda volta a ser interpelado quando, à entrada para o autocarro, Pepinot lhe pede para o levar. Era Sábado… 



A mensagem forte de OS CORISTAS aplica-se directamente à Segunda Guerra. Aliás, o filme de 2004 inspira-se numa película de 1945, intitulada «A gaiola dos rouxinóis». Além do retrato à dor acumulada, revela a força do bem que, no longo prazo, tem sempre a última palavra, mesmo quando a realidade presente é tenebrosa e tida por invencível. Aplica-se, igualmente, a um pós-guerra difícil num país depauperado, erguendo-se como um clamor para convocar as boas-vontades requeridas para ganhar o futuro. Por isso, o primeiro alvo são as crianças sobreviventes, começando pelas mais desasadas. Curiosamente, no Brasil, o título foi traduzido por «A Voz do Coração».

Por maioria de razão, o filme aplica-se ao Natal, que celebra o dia em que um Rei escolheu nascer pária da sociedade, longe dos poderosos da sua época. Paradoxal preferir partir da extrema pobreza e marginalidade, em todos os sentidos, incluindo geográfico, para legar à humanidade uma mensagem vital e duradoura. Ao decidir fazer-se o mais pequeno dos homens, aquele Bebé encarnou, até ao âmago, a mensagem de Amor que partilha da mesma convicção de que o futuro se pode abrir à Esperança. Basta estender uma mão a quem precisa, como cantam os pequenos coristas na ária linda e de letra com sabor a Boas-Festas – «Vois sur ton chémin»(2), vencedora do Óscar da Melhor Canção Original.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
LES CHORISTES
Título traduzido, em Portugal:
OS CORISTAS
Realização:
Christophe Barratier 
Argumento:
Christophe Barratier e Philippe Lopes-Curval, inspirando-se no filme francês de 1945: «La Cage aux rossignols», realizado por Jean Dréville com argumento de René Wheeler e Nöel-Nöel.

Produzido por:
Arthur Cohn, Nicolas Mauvernay, Jacques Perrin e Ruth Waldburger 
Fotografia:
Jean-Jacques Bouhon, Dominique Gentil e Carlo Varini
Banda Sonora:
Bruno Coulais
Duração:
96 min.
Ano:      
2004
País:
França, Suíça e Alemanha 

        Elenco:

Gérard Jugnot         (Clément Mathieu, o viligante, músico e professor)
François Berléand   (o reitor)
Jean-Paul Bonnaire (o faz-tudo avozinho)
Jean-Baptiste Maunier (Pierre Morhange, miúdo da voz linda)
Maxence Perrin       (o amoroso Pépinot)
Grégory Gatignol (adolescente perverso e cadastrado: Pascal Mondain)
Marie Bunel          (a mãe de Morhange)

Local principal das filmagens:

Château de Ravel, Puy-de-Dôme, France 


 (2)  Letra no original em francês:

 «Vois sur ton chemin
Gamins oubliés égarés
Donne leur la main
Pour les mener
Vers d'autres lendemains
Donne leur la main
Pour les mener
Vers d'autres lendemains

Sens au coeur de la nuit
L'onde d'espoir
Ardeur de la vie
Sentier de gloire
Ardeur de la vie, de la vie
Sentier de gloire, sentir de gloire

Bonheurs enfantins
Trop vite oubliés effacés
Une lumière dorée brille sans fin
Tout au bout du chemin
Vite oubliés effacés
Une lumière dorée brille sans fin

Sens au coeur de la nuit
L'onde d'espoir
Ardeur de la vie
Sentier de gloire
Ardeur de la vie, de la vie
Sentier de gloire, sentir de gloire



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