03 março 2017

A gestora do hipermercado *

Chamava-se Maria Helena e era responsável pela secção de peixe do hipermercado. Sabia tudo sobre sargos, besugos, guelras, escamas, época da desova, pesca do safio, extinção das espécies, funcionamento das lotas, necessidade de remunerar o accionista, receitas minuciosas de ir ao céu.

Se comparássemos a vida da gestora a um carro, dir-se-ia que seria algo de discreto, com um historial desinteressante em termos de picos de velocidade, iminências de desastre, curvas apertadas, ultrapassagens no limiar da segurança. Maria Helena tinha conhecido amores, solidões chorosas em madrugadas frias a compor a sardinha ao lado do salmão, noites sensuais cuja torridez do sexo envolvido se encerrava dentro de intervalos apertados. A rapariga era, de facto, uma montra de peixe que não se destacava pelo contraste ou pelo arrojo.

Um dia, uma colega – Aldina, natural do Cartaxo, baixa e entroncada como uma levantadora de pesos -, desafiou-a a consultar alguém que lia cartas e fazia mapas astrais.

O que tens a perder? Olha que já lá fui e saí toda arrepiada com o que ouvi. Posso garantir-te que não é um charlatão de turbante por trás de uma bola de cristal. Vai e depois conta-me. Já viste que fresquinhas que estão as douradas?

E a Maria Helena foi, num fim de tarde chuvoso e triste, com uma humidade que lhe estragava o cabelo e um vento que lhe partia o chapéu-de-chuva.

Posso dizer-lhe, Dr. Garcez,

diria ela ao astrólogo, um homem alto e magro como um ramo de salgueiro, e uma melena branca penteada para trás com um esmero de artista,

que a minha mãe garantiu que eu nasci às 12.45h.

No dia seguinte, no trabalho, foi confrontada com a franqueza campesina da colega.

Olha, digo-te, se fosses uma chaputa não ias para o linear. Estás cá com uns olhos…

E a Maria Helena contou o que ouvira, a quantidade de pistas que o Dr. Garcez lançara sobre o seu passado, o seu presente e o seu futuro. É claro que não soubera nada de concreto, mas a gestora encaixara pedaços de informação com histórias que só ela sabia.

Digo-te, Aldina, cheguei cá fora e sentei-me com as pernas a tremer… E o que será o meu futuro, com tudo aquilo que eu ouvi? Quem serão estas pessoas, estes sítios, estes acontecimentos?


Ao fim da noite, já em casa, agarrou-se a um chá calmante. Recusou um convite do Amadeu, chefe de secção de bebidas espirituosas, porque não lhe percebeu o enquadramento no que o astrólogo dissera. O futuro que o Dr. Garcez lhe apontara era nebuloso e desfocado, mas quanto ao passado…


Foi despertada pelo telemóvel que reproduzia a Beyonce, na batida forte do Single Ladies.

Está lá, Lenita?

Diz, mamã.

Olha, estou tão arreliada.

O que foi, mamã?

Então não é que te disse uma coisa errada? 12.45 foi a hora a que o teu pai e eu casámos. Tu nasceste eram quase dez da noite. Esta cabeça…

Conheço-a bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

* publicado originalmente em 7 de Dezembro de 2009

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