Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
***
Florentino pousou o livro sobre as pernas e sorriu. Não o fez para ninguém em especial, porque estava sozinho no alpendre. Talvez tenha sorrido para si próprio, ou, quem sabe, tenha devolvido o sorriso com que o destino lhe pregara esta partida. De facto era uma partida: logo ele, um homem tão voltado para a cidade, para o espaço urbano, para as praças e para a circulação frenética das pessoas, para a vida de bairro e das lojas pequenas, herdar uma propriedade no meio do Alentejo. Mas que raio vou eu fazer aqui?, perguntou-se o engenheiro civil com um doutoramento em estruturas anti-sísmicas e coleccionador de boquilhas.
Florentino tinha passado o primeiro fim de semana na quinta. Passara a chamar-lhe desterro, não em homenagem ao bairro lisboeta, mas em sinal de pessimismo militante, como se fosse um político anti-regime condenado à extradição para ambientes inóspitos. Para ele havia o comércio local e as sedes do partido; para ele, também, havia o correio da manhã e os jornais chamados de referência. Tudo estava ligado - havia uma linha ténue, invisível, imperceptível para a maioria das pessoas, que unia a loja das revistas, a relojoaria de segunda mão e a padaria regional ao correio da manhã. Como? Como algo que veicula - talvez mesmo que é - o país real. Nas sedes dos partidos, no jornais de referência, nos restaurantes de autor e nos grandes hotéis a via era feita de artificialidade, de existências pintadas a blush e a botox, de cores que não são as existentes na natureza. Olhou em volta e não viu comércio local nem vida bairrista. Olhou em volta e não viu, simplesmente... Era um cego, de olhos lucidamente abertos, ou um esperto que olha para o vazio.
Florentino olhava para o sobreiro, para a giesta, para a secura, para o pastor e para o eucalipto com o mesmo desespero com que se olha para a declaração do iva, para uma multa de trânsito ou para uma análise de sangue que revela excessos. E quedava-se mudo, imaginando uma venda ao desbarato, como quem despacha uma loja de gelados herdada de um tio louco e emigrante no Alasca. Decidiu-se pela venda, tendo partilhado a decisão com Veronika, uma namorada alemã muito recente, em Portugal a fazer um trabalho sobre a comida dos ganhões nos anos 60, e que cozinhava com primor e arrojo. Tomada a decisão, sentaram-se a jantar. Veronika apresentou-lhe um prato que cheirava divinamente. Perguntou-lhe o que era mas a rapariga, a dominar ainda mal o português, respondera-lhe apenas: roter gabeldorsh. E Florentino comeu e repetiu e sentiu-se bem. E só percebeu que comera um prato que toda a vida detestara quando Veronika lhe perguntou:
- O que quer dizer fui até ao campo com grandes propósitos?
Talvez não fosse tempo de vender.
Talvez não fosse tempo de vender.
JdB
Falhei em tudo.
ResponderEliminarComo não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
JdB, a beleza do jogo está precisamente em conseguir-se o nada .
O nada é a Páscoa do sonhador.
Não fora o constante nada no fim de cada caminho e só teria havido uma paisagem em toda uma vida. Aleluia pois para os eleitos; o Homem sonha, Deus quer e a Obra é nada. (pobres daqueles para quem a obra nasce)...
Que maravilhoso falhanço que é a busca da felciidade entre os chaparros, que destino glorioso ser vitima da «Cidade e as Serras». Ah, Jacinto esse fiel e eficiente carrasco . Até breve , que vou subindo para o patíbulo.