Felicidade: Êxtase ou interioridade?
Êxtase ou interioridade? Relâmpago ou panela ao lume? Quando
falamos de felicidade, a ideia que dela temos associa-se a dois tipos de
imagem que correspondem a dois modos opostos de nos relacionarmos com o
tempo.
O primeiro tipo é o da vida intensa: inesperadamente, eis-nos
surpreendidos, deslumbrados, de boca aberta. O segundo é o da vida
serena: estamos abrigados, na calma, num banho de doçura. Naquele é a
fratura; neste a maturação. Naquele, o instante; neste, a duração.
Esta separação das nossas visões felizes entre o relâmpago e o
céu azul, o acontecimento e a harmonia, o sublime e o agradável, divide
também a nossa aproximação à beleza.
Uns experimentam-na como uma fratura: a aparição de uma
transeunte de corpo esplêndido que passeia no nosso coração. Outros
percecionam-na como uma ascensão lenta mas irresistível: a superfície do
mar na Grécia, calma e cintilante, mas cuja imensidão luminosa e
tremeluzente vence pouco a pouco a nossa alma.
Assim acontece para a verdade: é visão ou caminho, véu que de
uma vez se levanta ou diálogo que se prolonga? Para o trabalho: é
sucesso rápido ou trabalho atento, eficácia imediata ou paciente
recomeçar? Para a conversão: é Paulo ou Pedro, queda abrupta do cavalo
ou continuar durante anos sempre a tropeçar?
Certo é que o nosso tempo está mais do lado da fulguração. Ela
confunde facilmente o veloz e o vivaz, talvez por causa da aceleração
tecnológica, da banda larga e da ligação quase instantânea que
desencadeia o deslocamento vertical no ecrã que um instante antes era
cinzento. Requerida pelo comboio de alta velocidade mas que impede a
contemplação da paisagem.
É por isso que temos tanta dificuldade em agarrar o pensamento
dos Antigos que cantavam a paz. Aos nossos olhos encadeados, a paz
parece um sono; a sua harmonia uma inércia; a sua duração uma insipidez.
Quando Santo Agostinho a define como a «tranquilidade da ordem»,
pensamos quase na morte, não decerto na felicidade.
O problema com a busca do intenso é que arruína a sensibilidade.
As sensações nunca são suficientemente fortes. Começa-se com o parapente
para passar ao salto com o elástico, a queda livre com paraquedas, o
voo em "wingsuit" e por fim a queda livre sem paraquedas. O suicídio
será sempre de intensidade extrema e sem retorno.
Não dou exemplos de tipo carnal, mas, evidentemente, seria necessário
neste caso lembrar a violação e o homicídio. Infelizmente, também o
assassínio em série acaba por se aborrecer: cortar uma mulher em
pedaços, obstinadamente, excita-o tanto quanto descascar uma batata.
Dá-se conta de que alguma coisa está errada. Que poderia ter ficado
pela batata, se tivesse sido mais sensível, mais capaz de espanto.
É por isso que o gosto pela intensidade faz facilmente cair a sua
lógica para jogar melhor nos contrastes. Coloca-se ao ritmo do caracol
para ficar desconcertado pela velocidade da tartaruga. Permanece-se
dias fechados na obscuridade para abrir repentinamente as portas e
perceber um dia cinzento como uma formidável fulguração. Jejua-se três
dias e, logo a seguir, nada é mais intenso, mais saboroso, nada dá mais
prazer do que um bocado de pão duro. O ascetismo é o único método para
viver um hedonismo que não se torna aceite.
Mantendo por muito tempo uma intensidade de vida muito baixa, na
solidão, até o meio sorriso de uma senhora idosa pode parecer-nos como
uma experiência de um poder extraordinário.
Compreende-se porque é que a questão da intensidade não é a única.
A fé seria apenas um golpe de varinha mágica se tudo se decidisse
assim, numa queda do cavalo. O amor seria somente ilusão e desilusão se
se reduzisse ao orgasmo. A sua vocação e a sua prova estão
precisamente em passar do êxtase ao interior, do relâmpago à panela ao
lume.
Os românticos volúveis não deixarão de considerar esta passagem
como um aburguesamento. É por isso que não conseguem entrar na profunda
poesia do quotidiano.
Título original do artigo: «Essa procura de sensações que nos tira o quotidiano».
Fabrice Hadjadj
In: "Avvenire"
Trad.: SNPC
Publicado em 01.05.2017
Tempo, assunto tão querido em Inglaterra. “Como nos relacionamos com o tempo” daria uma conversa interminável.
ResponderEliminarPensei em Sting.
Sting trata com a habitual elegância também a questão do tempo em Englishman in New York. Veja-se “a gentleman will walk but never run.”, aos 3’ de https://www.youtube.com/watch?v=d27gTrPPAyk.
Um olhar sobre esta questão.