Vejo pela enésima vez - melhor, vejo cenas esparsas - do filme A Paixão de Shakespeare. Para além da dimensão estética que me sugere a actriz principal, há uma frase luminosa que é dita por duas ou três vezes durante o filme, e que eu já reproduzi aqui. Quando confrontado com alguns problemas aparentemente irresolúveis e graves, um dos persongens responde que tudo se resolverá. Perguntam-lhe angustiadamente: Mas como? A resposta chega aparentemente vaga, mas inundada de uma esperança intuída: não sei, é um mistério.
Parte da nossa vida são problemas aparentemente irresolúveis e graves. Para alguns não vemos solução, para outros a alternativa é entre mau e pior; para alguns não vemos esperança, porque a estrada em frente aparenta ser um beco sem saída já ao virar da esquina. Muito acaba por se resolver - não sei se é Deus, se é o destino, o fado ou as probabilidades. O que sei é que, mesmo para um funcionário cansado, há sempre a hipóteses desta resposta face ao mas como se resolverá tudo? com que enfrentamos a angústia: não sei, é um mistério.
JdB
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Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
António Ramos Rosa, in 'O Grito Claro'
ResponderEliminarAgradeço o belíssimo poema e o mote do post 'Não sei, é um mistério...' sobre um e outro poderá tecer-se uma tese que certamente nos conduzirá a nós próprios, e também certamente continuará a não desvelar o/um mistério que somos...