Talvez seja a proximidade das férias, já em pleno Verão, que traz o sabor fresco da maresia. Ou será só um pensamento português, que tem sempre o mar por horizonte. Revigorante e infinito. Os poetas foram os primeiros a chamar nosso ao mar, dando nacionalidade aos trilhos mais percorridos pelos antepassados de outras eras. Caminhos e mapas que para a maioria são terrestres, para os portugueses são sulcados nos oceanos.
Percebe-se que uma das vozes marinhas do nosso património literário – Sophia (1919-2004) – considerasse o mar como um milagre criado para a inspirar infinitamente:
«Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.»
Foi também uma presença maior nos seus contos, pois ali se guardavam os melhores segredos da infância que se aventurava até à praia, à descoberta de um mundo mais verdadeiro e íntimo, vedado aos olhares curtos e embaciados dos adultos. Associou-o, igualmente, à alma feminina, que se espelha nos olhos. E nunca se cansou de o ver colossal, para com ele engrandecer tudo o que descobria inteiro e magno. Assim o cantou em «O mar dos meus olhos»:
«Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma.»
Será só coincidência que as obras mais especiais de Amália quase sempre transbordem de mar, como o «BARCO NEGRO» a musicar um poema lindo de David Mourão-Ferreira?
Outro tanto podia dizer-se da «CANÇÃO DO MAR» (1) ou d’ «O POVO QUE LAVAS NO RIO» (mais fluvial) com letra e música de Pedro Homem de Mello a denunciar o sofrimento silenciado de muitos na época da censura assumida, ou do espantoso fado «GAIVOTA» com letra de Alexandre O’Neill(2) e música de Alain Oulman (1965) a falar, como ninguém, das deambulações do coração português, figurado nas aves marítimas que povoam os céus da cidade à beira Tejo:
Na própria letra do «FADO PORTUGUÊS» – escrito para Amália por José Régio e com arranjo musical de A. Oulman – o mar é o espaço natural onde se cantam as penas e as alegrias. Nunca menos que um horizonte descomunal capaz de alcançar as nuvens:
«O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada.
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.»
Referindo-se sobretudo ao «BARCO NEGRO», é curioso ouvir de estrangeiros a impressão causada pelo fado, a ecoar na alma. Dito por um espanhol: «No hablo portugues, solo escucho, escucho y siento que el fado es la música para mirar atrás, para recordar, para mirar adentro de nuestra alma; para recordar el amor y el desamor, la felicidad y la tristeza, la compañía y la soledad.». Explicado por um brasileiro: «ao ouvir essa música, logo nos primeiros acordes, ela me deixou paralisado! Como se me falasse ao fundo da alma, e me pareceu tão familiar como se já a conhecesse.» Na comédia «Gaiola Dourada», realizada por um francês de ascendência portuguesa, há uma cena passada num bar minúsculo e típico da ruela empinada onde corre o Elevador de Sta.Catarina, cujo clímax é o fado entoado por Catarina Wallenstein. Conta o realizador que ao terminar a filmagem, de take único, dá com a equipa francesa comovida até às lágrimas. Surpreendido, ouviu-os explicar-lhe que tinham sido invadidos por aquela sonoridade nostálgica e ancestral. A letra cheia de ideal e incompreensível para eles, a contar que depois de um tempo de diáspora é hora de voltar a Portugal, tinha passado inteiramente pela incrível expressividade musical, cantada com enorme convicção. À fado!
Fazendo jus à tirada refrescante de Nietzsche – «sem a música, a vida seria um erro», fica ainda um dueto de Julio Iglesias e Amália (1980) – «CANTO A GALICIA» – igualmente melancólico e impregnado de antiguidade, a evocar uma raiz civilizacional que deixou marcas indeléveis no pequeno Condado Portucalense, berço do país nascente, há quase mil anos. Ouve-se o mesmo eco que ficou a ressoar nos fados:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Letra de Frederico de Brito e música de Ferrer Trindade, começou por ser cantada, em 1955, sob o título «Solidão».
(2) O génio de O’Neill imortalizado no fado «GAIVOTA»:
«Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar
Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração
Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se um olhar de novo brilho
No meu olhar se enlaçasse
Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração
Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem a despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro
Que perfeito coração
Morreria no meu peito
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração.»
ResponderEliminarDaqui onde estou vê-se o mar... E aos percebes chamam understandings...
Que post tão 'a propósito’. Não sabia que o ‘Fado Português’ tinha sido escrito para a Amália.
Obrigada Maria Zarco!