28 agosto 2017

Moleskine

Livros

Não só é raro, como não representa nenhuma capacidade intelectual superior: leio quatro livros em simultâneo. Nunca me aconteceu, mesmo que os livros tenham particularidades que, para mim, permitem esta simultaneidade. Leio Contos, de Clarice Lispector, O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, Da Pintura, uma colectânea de escritos de Eduardo Lourenço, e, por indicação e empréstimo do meu querido amigo ATM, Acta Est Fabula, o quinto e último livro de memórias de Eugénio Lisboa, correspondendo ao período que vai de 1995 a 2015. Como pode depreender-se pelo tipo, todos os livros, com excepção do escrito por Hermann Hesse, permitem uma leitura fragmentada.

Os livros correspondem a sugestões que me foram feitas, ou porque fariam sentido para a minha tese de doutoramento (o caso da colectânea de Eduardo Lourenço), ou porque teriam interesse para perceber estes meandros, onde me agito vagamente, das universidades e dos escritores com as suas manias, embirrações de estimação, ódios e paixões, expectativas de Nobel ou desejos insatisfeitos de comendas (no caso do diário de Eugénio Lisboa). Sobre o primeiro, reconheço a minha incapacidade intelectual para, não só tirar ideias como, em muitos casos, para o perceber. O filósofo é, neste caso específico, demasiadamente hermético para o meu gosto. Quanto ao Diário, é demasiado cedo para me pronunciar mas é, talvez, excessivamente factual para o meu gosto: fui aqui, jantei ali, li isto e fiz aquilo. É clara a embirração por Saramago (um ponto a favor), a admiração por Mourão Ferreira (percebo) uma certa acrimónia por Vergílio Ferreira (hmmmm...). 


Boxe

Os jornais, ou pelo menos o Observador, deliciam-se até à exaustão com o que chamaram o Combate do Século, que opôs Mayweather a McGregor, sendo que o primeiro venceu por KO técnico (os últimos segundos que vi do combate).

Tenho dificuldade em achar que o boxe é um desporto. Fala-se muito nas célebres regras do Marquês de Queensberry (que poderão consultar aqui) que deram origem ao boxe moderno. No entanto, nenhuma das doze regras elimina o fundamental: o desejo de vencer o oponente por KO, isto é, zurzir o oponente da maneira mais feroz possível (ainda que dentro das regras) para que este caia estendido no chão, inanimado. Podem as luvas ter de ser isto ou aquilo (regra nº 8); pode ser proibido golpear o adversário abaixo da cintura (não consta das regras...); pode mais isto e mais aquilo que o facto é este: o maior número de murros, nos sítios legalmente mais debilitantes, para que alguém desmaie e se estenda ao comprido. Desporto? Para mim não...


Textos

Por motivos que não vêm ao caso, leio manuscritos de alguém que desapareceu há meia dúzia de anos e que se entreteve, numa letra nem sempre fácil de decifrar, a fazer poesia. Não percebo o que leio e, sobretudo - e esse é que era o desafio - não interpreto o que leio, de nada consigo tirar uma ideia sobre as motivações da escrita, os dramas ou alegrias interiores, os conflitos consigo próprio ou com os outros. 

Este exercício, mais lúdico do que de investigação, faz-me lembrar uma entrevista que ouvi há um bom par de anos. Um estudioso (ou editor?) contava que Kafka perdeu a voz nos últimos tempos de vida, pelo que escrevia as respostas num caderninho. Não se conhecem as perguntas que lhe seriam feitas oralmente, mas conhecem-se as respostas que estão escritas. E agora invento: se sabemos (ou intuímos fortemente) que pergunta teria sido feita se o escritor dissesse bife com batatas fritas, uma resposta que não suscita nenhum pensamento interessante sobre Kafka, talvez (como referia o entrevistado) haja lugar para um devaneio se lêssemos dois pombos em silêncio ao por-do-sol.  Que pergunta lhe fizeram?

Continuarei na investigação, certo de que não interpretarei nada que valha a pena um sorriso de mistério decifrado. Somos, obviamente, muito mais do que aquilo que escrevemos.

JdB

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