Fernando Quintela, forcado dos Amadores de Alcochete, morreu no final da semana passado, no decorrer de uma pega de touros. Tinha 26 anos, e à família dele ligavam-me laços de proximidade e de amizade com mais de 40 anos.
Nada se diz a uns pais que perdem um filho, seja desta ou daquela forma. Nenhuma frase é consoladora, porque nenhuma frase tem o poder mágico de parar o mundo e levá-lo a rodar em sentido inverso até nos quedarmos no momento imediatamente antes do drama maior na vida de uns pais, naquele tempo de felicidade possível em que estão todos de volta de uma mesa a conversar sobre as banalidades da vida. Ou, no caso do Fernando, para chegarmos de novo ao momento em que o cornetim chama o grupo para a pega, ao momento em que todos saltam para a arena, ao momento em que, inundado de adrenalina e gozo, ele cita um animal com uma voz que foi feita para aquilo, e o agarra com uns braços que foram feitos para aquilo.
Nenhuma frase é suficiente para permitir que a visão do passado, das memórias fagueiras, das primeiras frases e dos sonhos paternais de futuro não seja interrompida de forma brutal, como um música que se suspende inesperadamente no ar, uma oração que ficou por completar por esquecimento da fórmula ou por descrença na sua dimensão benéfica. Como se entre uns pais e o campo que é o futuro sem limite se interpusesse uma parede brutal, alta e, num certo sentido, intransponível.
Muito pouco se pode dizer a uns pais que perdem um filho, e eu nada lhes direi quando os vir, nada de muito sério ou reconfortante lhes diria se me encomendassem um escrito para os pais do Fernando. Podemos falar da fé que não pode abandonar-nos, na certeza de que o rapaz está bem, na mão inexistente de Deus neste acontecimento, porque essa convicção nos permite que continuemos a rezar e a pedir e a agradecer e a interrogar Aquele que não é senão Amor. A uns pais que perdem um filho dá-se um abraço e confia-se que não lhes falte nada nos tempos que virão: os amigos e a família, um sorriso, a alegria possível, o luto bem feito, a necessidade de encontrar um sentido para tudo isto, a fé que sempre existiu naquela família alargada.
Ser-se forcado - digo eu, que nunca fui - não é uma opção de herói ou de louco. É gostar do risco, seguramente herdar esse gosto, no caso do Fernando, ter consciência de que tudo pode acontecer: as mazelas e o corpo dorido, o ramo de flores atirado da bancada com um sorriso ou um beijo, as noites maniversas sem glória, o espírito de grupo a não quebrar-se nunca, o respeito por um confronto de desenlace incerto. Ou ainda o fim de tudo, como aconteceu a nove rapazes nos últimos trinta anos. Como aconteceu ao Fernando, que se dedicou àquilo que lhe dava gozo, ciente de que podia haver um preço a pagar. E essa certeza do gozo e da satisfação podem ser um vislumbre de consolo para quem se confronta com o vazio de uma pergunta sem resposta, para quem questiona o destino, a mão divina, a justeza da vida.
Muito pouco ou nada se diz a uns pais que perdem um filho, seja desta ou daquela forma. Talvez rezar, pelo que farei o melhor possível.
JdB
Talvez não seja uma questão de« gozo», mas sim de «sentido da vida», o qual pela sua individualidade, intimidade e soberania , escapa à avaliação e até compreensão dos outros, devendo-lhe os outros porém o respeito de nos justificar o risco de vida e o consumar trágico dessa eventualidade.
ResponderEliminarTambém eu vou rezar por estes pais o melhor que sei pois vai ser difícil consola-los.
ResponderEliminarMais uma vez me torno mais consciente desta tão sensível fronteira entre a vida e a morte... e ainda a forma como estes jovens desafiam a morte com aquela impressão que são intocáveis...
Notável texto, João.
ResponderEliminarOcorreu-me, não sei porquê, o verso do Régio dedicado à Mãe de Deus: "O Filho dessa Mãe nunca mais morre. Aleluia!"