08 setembro 2017

Dos diários

Um diário tem (quase) sempre uma natureza íntima, pois é ali que falamos de desilusões, esperanças, relações afectivas, acontecimentos do dia a dia. De facto, é tão íntimo que não conheci ninguém que mostrasse de bom grado os seus diários, sendo que, numa certa juventude, até havia alguns que incluíam um cadeado. 

Há escritores que, por diversas razões, utilizam um registo diarístico na sua obra. Foi o caso, por exemplo, de Rita Ferro e (não estando bem certo do que digo, porque me parece que só li um volume) Marcello Duarte Mathias, para falarmos apenas nos actuais. Outras pessoas há que transformam um diário em Diários. Isto é, por uma razão ou outra, transformam aquilo que foram escrevendo ao longo dos anos num livro, dando ao público acesso a uma parte (ou à totalidade) do que escreveram. 

Acabei esta semana um livro de que fiz referência há algumas semanas: Acta esta Fabula, Memórias V - Regresso a Portugal (1995 - 2015) de Eugénio Lisboa. Trata-se de um diário ao qual o autor junta considerações actuais. Esta diário é um diário no sentido mais intimista que se possa falar. O que lá está é o que vai na alma do autor que, talvez ao início, não supusesse os seus diários publicados: há referências à vida social (com nomes), às filhas e netos, à doença e morte da mãe, do sogro, de amigos e dos dois gatos. Há considerações de ordem afectiva, quanto ao estado anímico (seu e dos outros), aos seus desejos e frustrações. Tem essa dimensão de registo pessoal.

Concomitantemente ao desgosto pelo dois gatos que morrem em idades diferentes, Eugénio Lisboa revela abundantemente o seu ateísmo mais aguerrido, com frases agressivas e desproporcionadas que não revelam decoro nem respeito. Menciona a sua embirração de estimação a Vergílio Ferreira, a Saramago, a Eduardo Prado Coelho, aos escritores actuais portugueses, à promoção das figuras públicas, aos políticos, aos ordenados pagos a Miguel Sousa Tavares e não sei quem, aos erros de sintaxe de Maria Filomena Mónica, à academia, aos pensadores que são isto mais aquilo. Concomitantemente ainda a tudo isto, há uma lista exaustiva de autores comprados, numa voragem que, a revelar igual capacidade de leitura, me provoca inveja. Mais de metade dos autores citados não os conheço - o que não (me) é abonatório... Ou talvez não seja isso. Concomitantemente ainda (e termino a utilização da palavra) há páginas imensas de auto-elogio, de auto-vitimização, de visão sobranceira sobre o mundo em redor, como se só da casa de Eugénio Lisboa, em S. Pedro do Estoril, se derramasse uma luz salvífica sobre o mundo.

Eugénio Lisboa escreveu para si próprio quando escreveu o diário, porque só depois escreveu para os outros. E o que lhe saiu intimamente foi este livro (e só li um dos cinco volumes...). Ou talvez tenha sido isto que ele quis ver publicado. Nunca escrevi diários, mas questiono-me se seria isto que eu poria - veneno, desprezo, embirrações, desrespeito, listas infindáveis de livros fantásticos adquiridos, superioridade que pode ser um disfarce da inveja. Na realidade, o que poria eu num diário?

JdB

PS: numa troca de sms com o meu querido amigo ATM, que me emprestou o livro, dou-lhe nota muito resumida do que tiro como ar do livro. Responde-me provocadoramente, nesta incessante graça que ele faz com o meu regresso à faculdade e ao mundo da literatura aos 50 e muitos anos: "é a tua tribo". Sorrio com gosto, mas, se assim for, "destribo-me". 

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