Frequento, no decurso do meu ano curricular para o doutoramento, um seminário intitulado "Seminário de Investigação I" com a seguinte descrição:
Este seminário será organizado a partir da discussão de exposições orais dos participantes. As exposições ocupar-se-ão, de uma forma preliminar, de tópicos que os participantes se proponham desenvolver nas suas dissertações. As discussões visarão a modificação desses tópicos. O objectivo final do seminário é a produção, por parte dos participantes, de um resumo escrito e pormenorizado, das suas futuras dissertações.
Comigo estão 11 alunos: 3 doutorandos, 8 mestrandos. Relativamente à minha experiência semelhante aquando do mestrado, tenho uma amostra maior. Há mais alunos, mais diversidade, mais possibilidade de perceber tendências, notas comuns, semelhanças. Com alguma experiência acumulada de quatro ou cinco anos (já não sei bem...) nestas andanças académicas, já dá para perceber bem em que sou igual e diferente dos meus colegas.
Ostensivamente, sou igual em algo muito simples: somos seres humanos, somos alunos, somos educados e respeitadores; temos regras de higiene básicas, e talvez tenhamos pontos de vista culturais, religiosos ou outros semelhantes. Não dá para ver. Ostensivamente sou diferente em tudo o resto: na idade, na formação académica, na agilidade mental, nos conhecimentos humanísticos.
Ontem discorria sobre este tema, e sobre algum impasse que vou sentindo nesta fase da tese. Leio os trabalhos dos meus colegas; leio o meu próprio trabalho. Conclusão? Todos usamos a mesma língua, todos escrevemos no computador, todos respeitamos o número de páginas que nos é imposto para um determinado trabalho. Nada mais nos liga. A linguagem deles é mais hermética, o conhecimento específico deles é mais vasto, as ligações que estabelecem são muito diferentes. Sem querer parecer superior (muito pelo contrário!) é como se o mundo deles fosse a academia e o meu mundo fosse a rua. Eles relacionam Stanley Cavell e Aristóteles; eu relaciono uma parede nua e o desejo de ver a Deus.
Sair da zona de conforto - como eu fiz quando me transferi de uma vida de fábrica para uma vida na faculdade de Letras - é ter a possibilidade de olhar com um certo distanciamento para mim próprio, como se me afastasse e, da cadeira da aula, visse quem eu era junto a uma máquina que produz detergentes. Fazer esse movimento é perceber uma limitação prática, inegável, incontrolável e irresolúvel: com 60 anos não poderei fazer o que eles fazem; como 60 anos eles poderão fazer o que eu faço. Entre mim e eles há 35 anos de fosso. Tudo o que sabem foi aprendido na faculdade de letras; tudo o que eu sei foi aprendido noutros sítios. Isto não significa nada de especial, apenas que me apetece dizer-lhes: olhem à volta; daqui por três décadas poderão relacionar Stanley Cavell com Aristóteles mas também uma parede nua e o desejo de ver a Deus. Que inveja!
Entre mim e eles só a zoologia nos impede de haver um conjunto intersecção vazio. E no entanto, sei que alguns deles olharão para mim e invejarão uma certa clareza e limpidez de raciocínio: a utilização de palavras correntes, de imagens correntes, de metáforas correntes, de temas correntes. A (minha) ignorância pode ser uma bênção...
JdB
Juntar a rua e a academia é um desafio e só assim se acrescenta conhecimento . Aposto que a sua dissertação vai ser um sucesso. Juntar a a ogiva gótica à vontade de conhecer deus e aos Stanley Cavell e Aristóteles, não é para todos.
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ResponderEliminarInteressante reflexão. Há que sacudir esse mundo endogâmico académico e relembrar que a elaboração Aristotélica também deambulou entre a observação de uma parede nua e do desejo de ver a Deus. Que nãolhe desmoreça a vontade...