Já conhecido dos grandes mecenas da arte que pululavam por Itália, aos 29 anos, Leonardo recebeu a encomenda dos monges agostinhos do mosteiro de San Donato a Scopeto (região de Florença) para pintar uma peça de altar de grandes dimensões: 246 cm x 243 cm.
A pintura do retábulo, mais tarde transferido para a Galeria Uffizi (1670), é tida por alguns como incompleta, justificando-se pela mudança do artista para Milão, onde o esperava o prestigiado cargo de pintor da corte ducal. Porém, há especialistas que vaticinam ser exactamente esse o efeito pretendido, reconhecendo que Leonardo levou ao extremo esta estética do non finito. O resultado «inachevé», segundo a expressão francesa aplicada às artes, vem do uso intenso de um tracejado «abosquejado», qual esquisse que não se perde em detalhes para melhor sublinhar o essencial e, sobretudo, não se deixar petrificar na ilusão (talvez pretensiosa) da completude.
O facto é que a beleza incomensurável deste Presépio, tornou-o no caso mais emblemático e feliz da aplicação do non finito à pintura. Ao fazer sobressair a mensagem principal, a obra terá cumprido na perfeição uma das máximas mais pedagógicas do próprio Leonardo: «O prazer mais nobre reside na alegria do entendimento [da realidade]». É também eloquente a obra ser elogiada por uma vitalidade e um poder de concentração excepcionais. Nem o toque afectuoso e espontâneo do pequenino faltou, maravilhado com a sumptuosidade dos presentes dos Magos. Leonardo no seu melhor, inexcedível mesmo:
«ADORAÇÃO DOS MAGOS» - Leonardo Da Vinci, 1481-1482, óleo sobre madeira. Na Galeria Uffizi de Florença. |
Há ainda uma teoria arrojada (mas com falta de adeptos nos peritos de arte credíveis, ficando-se pelas intrigas alarmistas que sustentam alguma literatura de cordel) que admite incluir traços de outros pintores, nomeadamente de Filippino Lippi, a quem os monges teriam incumbido de completar a obra (1496), tornando ainda mais inexplicável e ilógico o aspecto inacabado que, felizmente, mantém. No entanto, confirma uma constante associada ao legado de Leonardo, que não pára de inspirar teorias quase sempre conspirativas e até isotéricas, talvez sugestionadas pela biografia (1452-1519) pouco linear e repleta de hiatos de um artista tão genial quanto multifacetado, que usou abundantemente criptogramas para resguardar inventos prodigiosos. Os próprios semblantes enigmáticos de algumas das suas figuras – nomeadamente, a Mona Lisa – também favorecem estas estórias imaginativas, para além da tentação (e gozo) de lançar dúvidas sobre a sustentabilidade do valor avultadíssimo de qualquer peça assinada por Leonardo.
Nesta ADORAÇÃO DOS MAGOS, a criatividade fervilhante do pintor rompe com as convenções artísticas, facilitando a coabitação de inúmeros cenários, bem diferenciados pela ordenação em perspectiva, que era ainda um expediente invulgar. Este domínio exímio da profundidade permitiu hierarquizar as várias cenas e criar graus distintos de distância. O recurso a novos sombreados e claridades ajudaram também a acentuar esse efeito de perspectiva, remetendo os objectos para lonjuras até então inimagináveis. Acresce ainda a superabundância do sfumato para multiplicar os gradientes entre tons e gerar uma textura enriquecida cromaticamente pelos degradés. Isto sem contar com a aplicação exponenciada do non finito. Para lá de tudo, o pintor encontrou uma nova posição para Mãe e Filho ao centrá-los no primeiro plano, em vez da localização tradicional numa das laterais para desenrolar a cena bíblica em linha contínua, a fluir de um extremo ao outro da composição.
Em Leonardo, o presépio passa para o epicentro de uma narrativa que tem a ousadia de se desenvolver na profundidade (em vez de ser transversal), englobando episódios muito díspares que introduzem a temporalidade na pintura! Dizem os críticos de arte que esta obra do génio de Vinci, especialmente engenhosa e densa, conquistou a dimensão histórica, ao agregar épocas e civilizações distintas e distantes do Nascimento de há dois milénios. Ao suplantar a clássica representação unívoca e sincrónica do presépio, assumiu uma vertente escatológica, diacrónica, capaz de mergulhar aquele momentum na História da humanidade e colocar as duas Figuras no vértice da salvação de todos os tempos. Para todas as gerações.
Sob o traço híper subtil do renascentista, a harmonia do retábulo aparenta uma simplicidade e sobriedade que escondem um emaranhado geométrico muito intrincado. É nele que assenta a complexa arquitectura do conjunto, conferindo-lhe uma unidade inigualável. Também nisto Leonardo foi pioneiro, pois aquele tipo de sketchwork antecipou em séculos uma prática que só na arte moderna se tornou corrente.
Os Magos em adoração formam um triângulo perfeito com Maria e Jesus. Por sua vez, o triângulo está enquadrado por um semi-círculo, que congrega um segundo grupo de acompanhantes. O jovem na extrema-direita seria o próprio Leonardo. Num nível mais recuado, sobre a esquerda, assomam as ruínas de um templo romano pagão, atribuído à basílica de Maxentius que, segundo uma lenda medieval, teria sido derrubada quando uma virgem deu à luz. Nessa latitude, sobre a direita, um par de cavaleiros digladia-se ferozmente. Ao fundo, surge uma paisagem rochosa e desértica, alheia à riqueza afectiva que rodeia o Bebé, apresentado ao mundo pela Mãe. De facto, todo o espaço cénico está orientado para Maria, que se oferece como sustentáculo do Filho numa prefiguração do Ecce Homo, realçado pelas aguadas de tinta em tons térreos.
Em pontos significativos, árvores carregadas de simbolismo marcam presença. A palmeira é símbolo de vitória, além de simbolizar a Virgem referida no versículo do livro-poema atribuído ao rei Salomão – o Cântico dos Cânticos: «A tua estatura é semelhante à palmeira» (Ct. 7:7). Esta árvore personifica também o triunfo da cristandade e, especificamente, do martírio cristão sobre a morte e a violência da Roma imperial. A dupla representação dessa violência sanguinária e do esboroamento da sociedade pagã vem condensada nas cenas do fundo, onde ruínas e combates são subalternizados pelo episódio nuclear do retábulo (enquanto metáfora da própria História): o nascimento de Cristo.
A segunda árvore ao meio é uma alfarrobeira característica dos climas mediterrânicos solarengos, cujas sementes eram utilizadas na pesagem de pedras e metais preciosos. Daí personificar Cristo Rei do Universo ou Maria rainha dos Céus e da Terra.
Tal como a obra de Leonardo, se há música que respira Natal é a «NOITE FELIZ», declarada pela UNESCO Património Cultural Imaterial da Humanidade (Março de 2011). A ária foi composta para a Missa do Galo da pequena cidade austríaca de Oberndorf, junto a Salzburg, em 1818, por um austríaco pouco conhecido – Franz Gruber (1787-1863), a partir da letra do padre e poeta também pouco conhecido – Joseph Mohr (1792-1848). A beleza quase corpórea do original alemão «Stille Nacht, Heilige Nacht» internacionalizou-se em tempo recorde, fazendo jus a outra das máximas de Leonardo: «Pintura é poesia que é mais vista do que sentida, enquanto a poesia é pintura mais sentida do que vista». Mas não restem dúvidas de que o artista privilegiava a pintura, considerando-a superior à poesia por se basear no órgão sensorial que tem a primazia: o olho (1).
Desejo a todos BOAS-FESTAS com a Paz profunda que transborda da ADORAÇÃO de Leonardo e da música que se deixou impregnar pelo carisma único daquela Noite, aqui interpretada por um elenco de luxo: Pavarotti, Sarah Brightman, Placido, Carreras, Diana Ross, Tony Bennet, Charles Aznavour, Michael Bolton, etc., cantando num par de línguas variadas para oferecer a paz urbi et orbi:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
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(1) Definia o olho como o espelho da alma e relegava a audição para segundo sentido (apontamentos do artista disponíveis em: http://people.virginia.edu/~jdk3t/LeonardosParagone.htm).
Para si Maria Zarco, e para todos no Adeus, votos de Feliz Ano Novo!
ResponderEliminarM.