31 janeiro 2018

Vai um gin do Peter's?

O QUE TREME, QUANDO A ARTE INVADE A VIDA? "O QUADRADO" RESPONDE

O realizador sueco do filme "THE SQUARE"(1), Ruben Östlund (1974-  ) ganhou a Palma de Ouro em Cannes e a devida projecção internacional com esta sátira feroz e de emoções contidas ao estilo nórdico. Muita cerebralidade, muito civismo até se embater nos contratempos da vida. 

Quase não existe a emotividade carregada de sentimentalismo que superabunda na Europa solarenga do Sul, à parte de mini-surtos emocionais nas personagens que fazem de emigrantes radicados na bem programada sociedade sueca. São também os de maior lucidez por estarem menos presos às convenções. Coube-lhes, por exemplo, os risos incrédulos e irónicos às ideias estapafúrdias dos marketers vanguardistas para o spot publicitário da nova coqueluche do museu: a instalação de um quadrado marcado a luz no chão exterior do museu de arte contemporânea da Suécia. Esse imponente edifício em U corresponde ao palácio real sueco, onde o rei já não habita, pelo que Ruben O. decidiu chamar-lhe X-Royal Museum.    

O título inspirou-se numa instalação concebida por Ruben O. e a produtora Kalle Boman para o Museu Vandalorum, há anos atrás, para exaltar a invenção da passagem de peões. Umas meras riscas desenhadas no asfalto bastavam para activar um contrato público, onde os condutores davam prioridade aos peões. No filme, o quadrado assume um conteúdo humanista e a artista é conterrânea do actual Papa, pretendendo elevar aquele perímetro geométrico a "sanctuary of trust and caring. Within it we all share equal rights and obligations.

Christian, o curador, mostra às filhas a nova obra em exposição.

Um pequeno espaço de solidariedade, que em nada se parece com a metrópole de gente bonita e atarefada sem tempo para atender aos muitos pedintes imigrantes das ruas de Estocolmo.

No filme, tudo remete para as mensagens supostamente interpelativas das exposições exibidas no museu, cuja validade vai sendo testada no confronto com a realidade. O primeiro a servir como tubo de ensaio desse teste de verdade-e-consequência foi o curador cool do museu sueco. Bem sucedido, era a melhor encarnação de uma modernidade tranquila, bem intencionada e elegantemente blasée, a conciliar chiquismo com abertura à novidade. Arte oblige. Como ele gostava de repetir: aceitava levar a expressão artística ao limite. Onde ficaria a fronteira da arte? -  interrogava-se, sem se comprometer com respostas. 

Esse protagonista charmoso e competente representava uma sociedade em estádio civilizacional avançado, cujos comportamentos se aferiam pelo grau de racionalidade. Nesse termómetro da pura intelectualidade, o extremo negativo corresponderia ao recuo para o patamar mais animalesco da espécie humana. Nos valores intermédios, situavam-se as pequenas (de início) irracionalidades desses cidadãos exemplares, mal se confrontavam com os imponderáveis. 

Para mostrar quanto a realidade é incontrolável, desconcertando as mentes mais estruturadas do planeta, até primatas surgem no ecrã. Anedótico. Um deles é benigno - o chimpanzé que circula no apartamento da jornalista americana e se instala no sofá da sala a folhear um jornal. Cool e tranquilo como Christian. Mas intimidante. O realizador justificou esta bizarria para introduzir imprevisibilidade na narrativa. A partir dali, o espectador percebia que tudo se tornara possível.  

Bem mais assustador é o homem que faz a performance do orangotango. Não apenas pelo perigo de tanta animalidade, mas pelo horror de ver um humano regredir muito abaixo de homo sapiens, como só os humanos conseguem. Porém, são depois os convidados de smoking que fecham a espiral da violência sem limites, eles que tinham alinhado em brincar com o fogo.

Diz Ruben O. --  "Gosto de sociologia, porque olha para o ser humano quando falha, quando é mal sucedido (…); [faz] uma abordagem comportamental do que somos [e] permite aprender alguma coisa, a partir dos erros."

Estranho e medonho ter-se levado tão longe aquele jogo de abertura do jantar oferecido pelo museu aos mecenas e grandes investidores. Na prática, transpusera-se para a realidade uma das exposições, baseada num filme que corria em contínuo num mega-ecrã a mostrar o fácies raivoso daquele homem animalizado - o pior dos primatas. A charada ao jantar começara por uma voz-off sedutora, a anunciar o frisson de uns momentos no reino dos irracionais. Nesse faz-de-conta da selva, explicava-se que o truque consistia em manter a serenidade para passar despercebido e a fera mudar de presa! Deduzia-se, portanto, a inevitabilidade de haver uma presa. Mas nem isso fez vacilar os convidados em traje de cerimónia. Limitaram-se a embarcar passivamente naquela roleta russa, que só podia acabar mal.

Os smokings e os vestidos compridos são os primeiros visados no argumento de Östlund, que começa por pôr em cheque as elites intelectuais, sociais, artísticas, endinheiradas, os meninos prodígio do marketing viciados num provocatório amoral, os bem-pensantes que militam uma tolerância ilimitada e acéfala quando deixada à solta, além da ditadura do "politicamente correcto".

O jantar de gala será o episódio-clímax da proposta do realizador e argumentista, que aconselhou a ver o seu filme numa perspetiva sociológica para se perceber o que falha no ser humano e aprender com/a partir dos erros.

À ironia da perfeição geométrica do quadrado vai-se contrapondo a imperfeição humana, como observou o crítico de cinema Eurico de Barros. Paralelamente aos erros, Ruben O. vai revelando a possibilidade de irromper uma grandeza humana capaz de suplantar qualquer geometria - sempre hermética, pré-formatada, destituída de liberdade. É nessa tensão frágil da condição humana que a Arte joga a sua tripla cartada, enquanto alerta, memória histórica e incentivo à superação. Christian vê-se forçado a percorrer todas as etapas, aproveitando para lá do que lhe ocorrera as ideias-chave consagradas nas instalações artísticas do museu a que preside. De certo modo, a sua grandeza desponta quando começa a assumir as falhas, mesmo as involuntárias.

Em seguida, empenha-se em compensar uns e outros pelos estragos provocados.

Sobre Christian observa Östlund: "tem muitos fios a prenderem-no (…); quando perde o trabalho, acaba por se libertar e assumir as consequências dos seus actos."

Para cúmulo da ironia, é no ápice da sua humanidade que o curador enfrenta o teste mais duro: apresentar a demissão, porque reconhece os erros. Claro que não se furtaria à responsabilidade de não ter controlado, por falta de tempo, o escandaloso spot publicitário. De uma agressividade disparatada, mas do calibre dos jogos de computador. Indecoroso para um museu, mas consentido nos computadores lá de casa. Inaceitável ao serviço da arte, mas instrumental para os recordes de audiência que a arte quer atingir. Quanta incoerência. Quantos objectivos em rota de colisão. Quanta falha - na perspectiva de THE SQUARE.  

É na sessão pública, onde se declara demissionário, que sofre a derradeira humilhação, tornando-se alvo do politicamente correcto. Resulta no ataque mais próximo do jogo da selva, embora sob as roupagens traiçoeiras da alta cultura, que camuflam o agressor e desprotegem a vítima. Em nome da liberdade, impõem-se pensamentos e atitudes uniformizados, sem o menor respeito pela individualidade. Esta foi a denúncia do filme mais elogiada pelo presidente do júri, em Cannes - Pedro Almodovar. 

Na peregrinação interior de Christian, o sentido de humor nórdico é a pedra de toque para a viagem psicológica decorrer com subtileza e simplicidade. Aliás, o filme está classificado como comédia, naturalmente em registo sueco, ao estilo de um realizador em contraciclo, que escolheu a influência marxista na pátria da social-democracia. Sempre provocador e insatisfeito. 

Explica o realizador, que aprecia primatas: "O cinema, geralmente, tem tendência a descrever as personagens de uma maneira simplista: há o protagonista e o seu antagonista [herói vs vilão]; uma maneira simples e não verdadeira de abordar o modo como funcionamos."

As reflexões sobre a definição de arte parodiam com a cedência às instalações mais esdrúxulas. Para ilustrar o ponto, gozaram com o engano compreensível do staff de limpeza, que varreu uma das exposições, constituída por montes de terra desinteressantes. Em pânico, a assessora pergunta a Christian se devem accionar o seguro. Resposta pragmática do curador, cuja acumulação de contratempos o fizera ganhar simplicidade: Quais seguro! Recuperariam a terra do caixote do lixo e realinhariam os montículos inspirando-se nas fotografias deixadas pelo artista. No fundo, como bem indagara Christian na entrevista inicial à jornalista americana: se poisassem a carteira dela no museu, passaria a obra de arte? 

Intitulada "You Have Nothing", a instalação propõe-se oferecer uma metáfora da condição humana.  

A tolerância sem balizas também deu pretexto a muita chacota, como na conferência em que o artista vindo dos EUA foi boicotado pela corrente de palavrões do homem com síndrome de Tourette, que ninguém quis conter. Numa caricata benevolência. 

Noutra exposição temática à base de encruzilhadas, logo na primeira rotunda, as filhas de Christian preferiram o itinerário CONFIAR, rejeitando o NÃO CONFIAR. O circuito expositivo ia aumentando o grau de dificuldade ao exigir maior confiança e melhor interacção com o próximo. O que no museu soava a clichés inconsequentes, ganhou pleno sentido quando o curador arriscou aplicá-los, deixando à guarda de um sem-abrigo do metro, os seus sacos de boutique de marca. Queria confiar! Aliás, desde que a sua rotina fora perturbada por um roubo humilhante, ao tentar salvar uma rapariga em aflição que era uma armadilha ardilosa, Christian percebera quanto tinha de mudar para se reaproximar, verdadeiramente dos outros, passando à prática os conceitos miríficos das exposições que tão bem conhecia. 

De que valeria a Arte se fosse letra morta, exibida como troféu embalsamado, descolada da vida? Ao longo do filme, perpassa o constante desafio para o homo sapiens recuperar a humanidade, de forma consciente e livre. Bem na senda da interpelação do Papa polaco, que glosara o poeta grego da Antiguidade, Píndaro - Homem, torna-te naquilo que és. ou do apelo lúcido de Santo Agostinho: «Tu, homem, conhece que és homem; a tua humildade consiste simplesmente em conheceres-te.» Começar pelas falhas pode ser um bom arranque.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta) 
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(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: "THE SQUARE"
Título traduzido em Portugal: "O QUADRADO"
Realização: Ruben Östlund
Argumento: Ruben Östlund
Produtor: Erik Hemmendorff e Philippe Bober
Duração: 151 min.
Ano:        2017
Países: Suécia, França, Alemanha e Dinamarca
Elenco:   Claes Bang (o curador do Museu; dinamarquês)
                Elisabeth Moss (a jornalista americana)
                 Terry Notary (o homem primata) 
Local das filmagens: Estocolmo, Gotemburgo e Berlim 
Prémios: Palma de Ouro em Cannes para Melhor Realizador e Melhor Filme, 6 galardões da Academia Europeia de Cinema, prémios da Boston Society of FIlm Critics, do European Film Awards, do Toronto Film Critics Association e do British Independent Film Awards, entre outros. 

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