COMO SE CHEGA A TERRORISTA-SUICIDA? UM FILME ALEMÃO PÕE O DEDO NA FERIDA
Chega-nos do coração da Alemanha um filme que transpõe para a tela o livro de um alemão dos quatro costados, nascido uns meses antes da II Guerra, em Maio de 1939, em Hamburgo e membro do Júri do Festival de Berlim - Hark Bohm. O realizador e co-argumentista é outro alemão, mas de pais turcos - Fatih Akin (1973- ) - nascido na mesma cidade portuária alemã.
Em Portugal, adoptou-se um título menos feliz, de toque novelesco - "UMA MULHER NÃO CHORA"(1) - focado na legítima ânsia de justiça da protagonista - Katja. No Brasil, encontrou-se uma expressão mais forte: "EM PEDAÇOS", ainda demasiado centrado no desgosto.
É o título original alemão - "A PARTIR DO NADA" (Aus dem Nichts) - que dá o arranque perfeito à intrincada narrativa, facilmente reduzível a mera denúncia da nova vaga racista que aumentou na Europa, quando se viu confrontada com o fluxo interminável de refugiados. Especialmente desafiador para a Alemanha, o país sonhado por quantos desembarcam no continente. Como explicava uma habitante da periferia da antiga URSS: ansiava por mudar-se para o colosso germânico, porque ali reinava a ordem, a previsibilidade. Estranho serem conceitos tão desvalorizados pela maioria dos europeus, que dá por adquirida toda a moldura de Estado de Direito que ainda prevalece no Ocidental (até ver). Porém, é miragem inatingível noutras latitudes, onde reina uma desordeira primitiva e boçal, baseada na lei do mais forte. Fogem disso e da guerra, aplicação prática da tal lei do mais forte, esses proscritos do mundo dos ricos.
Tendo por pano de fundo a dor limite de Katja, é o estado de espírito de uma Europa parcialmente em pedaços que acaba por fluir no ecrã. Gente de ânimo frágil, em contínua perda de laços afectivos estáveis e profundos. Quantos mortos-vivos por ali circulam, submergidos num dia-a-dia arrastado, desprovido de esperança. Quanta agressividade entre pais e filhos. Quanta distância entre amigos, também eles pouco encontrados. Ironicamente, a excepção é o advogado amigo da protagonista - um alemão de origem estrangeira. As feições e o nome não deixam margem para equívocos: Danilo Fava.
A contrastar com essa maioria desmotivada, sobressaem as minorias fundamentalistas, estranhamente motivadas, que insistem em impor a toda a comunidade uma agenda destrutiva sem escrúpulos nem obstáculos. Sobeja ainda o pequeno enclave dos oportunistas obcecados pelo dinheiro e um certo carreirismo calculista, no filme ilustrado pelo assanhado advogado de defesa. Entalada entre terroristas, geralmente muçulmanos, e grupúsculos xenófobos violentos, a sociedade resiste a custo, desentusiasmada e meia perdida, apenas fincada nas leis e na ordem que as instituições do Estado ainda podem proporcionar. Enquanto o medo imobiliza quase todos, uns poucos replicam os mesmos métodos cegos e exacerbados dos extremistas de que foram vítimas, numa espiral que se autoalimenta. Nada como a raiva para se desembocar rapidamente no ódio.
A progressão negativa dos 4 D's é conhecida e tende a evoluir da pior maneira, se não houver nada de francamente positivo para contrapor a essa cavalgada derrotista. Vale a pena recordá-la: do Desgosto tende-se para a Decepção; daí, avança-se para a Desistência; e, se deixada sem freio, cede-se ao Desespero. Está formado o caldo onde medram as opções radicais, que reclamam gestos sanguinários. Os dois D's finais são os mais escorregadios, pois já se situam no terreno da vontade.
No filme, Katja oscila entre uma amálgama de sentimentos dilacerantes, açoitados por desilusões em cadeia, que ajudam a explicar a decisão final. Tornara-se surda ao saudável contraditório, privilegiando antes as soluções sem-retorno. Trágico, mas menos raro do que gostaríamos.
Aqui chegados [sem querer estragar o suspense do filme], surge a dúvida sobre a diferença entre uma caucasiana desesperada e qualquer imigrante-marginal que embarca facilmente em derivas kamikazes. Naturalmente, fazendo jus às hesitações que a assaltam, até vingar uma solução mortífera, mas com a lealdade possível, segundo um entendimento inquinado pela combinação explosiva de frustração e fúria. Viver tornara-se um fardo.
É significativo o argumento focar-se naquela europeia muito loira, muito alta e esguia - exemplo perfeito da ocidental nada e criada no Primeiro Mundo. Era por mulheres desta estirpe que se batia a campanha nazi de apuramento da raça. O realizador percebeu-o bem e partiu da mesma base para descortinar a massa de que são feitas estas alemãs bonitas, livres, incrivelmente modernas, com um toque de rebeldia saleroso. Que sonhos as movem? O que faz bater o seu coração? Quão tentador será presumirem-se superiores? Estarão fadadas para rejeitar outras raças, gentes de outros usos e costumes?
A personagem é desempenhada com mestria pela actriz alemã Diane Kruger, paradigma da abertura à diferença, como provou o casamento com um turco. Somava ainda uma faceta aventureira, pois esse turco tinha sido traficante de droga junto de universitários, até ser forçado a cumprir uma pena de prisão de quatro anos. Aliás, o filme abre com o casamento celebrado no cárcere. Num salto temporal de vários anos, deparamo-nos com um casal feliz, já com um filho amoroso, de óculos à Harry Porter - o Rocco. Tudo corria bem e o marido geria com talento uma empresa de viagens. Longe iam os comportamentos desviantes.
Foi azar o alvo do atentado ter sido a agência do marido da alemã gira, que se tinha cruzado com a assassina e a bicicleta onde se escondia bomba. Tão germânica quanto ela! Confirma-se, depois, quanto aquele racismo de inspiração neo-nazi funcionava como pobre argumentário pseudo-filosófico para alguém se sentir autorizado - talvez até "mandatado" - a decidir sobre o direito à vida. Sempre e só a vida dos outros, dispondo-se a assassinar quem chumbasse no teste.
Sem dificuldade, a história aproxima-nos da perspectiva de Katja, suscitando simpatia, mesmo a quem desaprecie tatuagens, casamento com ex-presidiário, drogas, ainda que leves. Intencionalmente, a sua casa é moderníssima, imersa num arvoredo pacificador. As vidraças gigantescas e um traçado arquitectónico sofisticado ajudam a desmontar os preconceitos fáceis. Cultura, arte, bom gosto ou sabedoria desconhecem distinções de qualquer ordem, sejam étnicas, etárias, de sexo, poder de compra ou outra. Apenas se constata onde está, mas não onde despontará. Surge com a mesma liberdade incontível daquele Vento que sopra onde quer, muitas vezes em quem menos se espera…
Quanto mais o argumento flui, mais nos atinge a dor que brota da ferida insarável da protagonista. As recordações dos bons tempos das selfies e dos pequenos vídeos em família aumentam a amargura do Nada que a corroía, desde o atentado. Naquela hora de trevas, a corrida desenfreada de Katja ao encontro dos escombros, temendo o pior e fugindo à polícia, que não queria vivalma na zona atingida, dão bem a dimensão de um sofrimento sem consolo possível.
Depois de derramado o primeiro sangue inocente, a vertigem sanguinária adensa-se continuamente: além da tentativa de suicídio com golpes nos pulsos que tingem por completo a água do banho, também a tatuagem maior leva um acrescento cor de sangue vivo. Percebemos a obsessão e tememos pela capacidade de vir a condicionar o rumo dos acontecimentos.
Apesar de tudo o que desbravamos ao longo do filme, ficam por responder as perguntas mais misteriosas sobre os rumos de vida de uns e de outros. Como podem desembocar nos extremos opostos gente que partilha a mesma cultura? Onde Katja era exemplo de abertura em estilo alternativo, os compatriotas neo-nazis encarnavam a intolerância xenófoba, eivada de orgulho e violência.
No fundo, embatemos de frente no mistério insondável da liberdade humana, que irrompe com frontalidade, bem à alemã. Serve de exemplo o testemunho desassombrado do pai que depõe em tribunal contra o filho transviado. Não percebia o que o fizera abraçar um ideário que o transformara num serial killer vulgar e odioso, como redundam todos. Outro exemplo de sinal positivo encontra-se no apoio generoso e incansável do advogado de defesa de Katja, que se bate pela justiça com as armas que uma democracia madura oferece… nem sempre eficazes.
A obra recente de Akin termina em tragédia, numa praia grega batida pelo sol sob a copa aconchegante de um pinheiro manso centenário. A beleza suave da paisagem aumenta o drama de um desfecho evitável. A carnificina despoletada na Alemanha estendera metástases até ao sul da Europa. O ajuste de contas, em que todos saíram perdedores, resultou no último gesto de uma mãe mergulhada num vazio tenebroso, de onde perdera a vontade de se libertar. Nem o telefonema acalentador do amigo advogado a consegue resgatar daquele trilho justiceiro impregnado de morte.
Face a um niilismo tão exasperado e enfurecido, o racismo ajuda, e muito, a atear uma fogueira que arde, há muitos anos, sem se ver. Sem se querer ver! Quo Vadis Europa? Quando haverá coragem para reconhecer e inverter a deriva arriscada em que nos deixámos embalar?
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: "AUS DEM NICHTS" (A partir do nada)
Título traduzido em Portugal: "UMA MULHER NÃO CHORA"
Realização: Fatih Akin
Argumento: Hark Bohm (autor), Fatih Akin (adaptação cinematográfica)
Banda Sonora original Josh Homme
Duração: 106 min.
Ano: 2017
Países: Alemanha e França
Línguas faladas: Alemão, grego e inglês
Elenco: Diane Kruger (Katja)
Numan Acar (marido de K., Nuri Sekerci)
Rafael Santana (o filho, Rocco Sekerci)
Denis Moschitto (o advogado amigo, Danilo Fava)
etc.
Local das filmagens: Costa grega; Alemanha, sobretudo a cidade de Hamburgo.
Site oficial: http://www.inthefadefilm.com/
Prémios: Globo de Ouro e Palma de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro; galardão do Critics' Choice Award. Diane Kruger arrecadou vários prémios de Melhor Actriz.
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