No enclave rico e estratégico da Alsácia-Lorena, Estrasburgo brilha pela arquitectura harmoniosa das ruas que serpenteiam os braços de um afluente do Reno, formando canais semelhantes a uma pequena Veneza repleta de pontes, palacetes e pracetas acolhedoras. Em 1988, o centro histórico foi declarado Património da UNESCO.
Fadada para ser próspera e culta, nasceu na linha vital do Reno como encruzilhada dos negócios, das relações diplomáticas internacionais e dos exércitos imperiais. Demasiado cobiçada pelas grandes potências, tornou-se palco regular de combates encarniçados, seguindo-se depois um esforço homérico de reconstrução, ora em posse germânica, ora francesa. Apesar de hoje pertencer ao território galês, a influência alemã predomina.
Os ciclos de destruição e restauro reflectiram-se, em primeira instância, na magnífica catedral gótica - jóia arquitectónica na ilha urbana recortada pelo circuito sinuoso dos esguios canais. Com o palmarés de quarto templo cristão mais alto do mundo, com uma única torre, a sua história atribulada será tema do próximo gin.
Terminada em 1284, está dedicada a Nossa Senhora. Os vitrais, a perfeição da estatuária e o famoso relógio astronómico são ex-libris da magnífica catedral |
O conforto e a modernidade de Estrasburgo atraíram figuras maiores da cultura e ciência europeias, que ali passaram grandes temporadas: Gutenberg (1400-1468) - inventor da impressão mecanográfica, o humanista Erasmus de Roterdão (1467-1536), o reformista protestante Calvino (1509-1564), o genial escritor alemão Goethe (1749-1832), o compositor austríaco W.A. Mozart (1756-1791), o cientista Louis Pasteur (1830-1895) e o médico-filósofo Albert Schweitzer (1875-1965).
Bem localizada num planalto 140m acima do nível do mar, começou por constituir o bastião fronteiriço do Império Romano junto às margens protectoras do Reno, logo nos primórdios do séc. 12 a.C.
- Logo no século III, foi elevada a sede episcopal, beneficiando mais tarde do estatuto de Cidade Livre no seio do Sacro Império Romano-Germânico (962-1806). Aliás, a partir do século X, a autoridade máxima passou a ser exercida pelo Bispo, que adquiriu o título de príncipe.
- No século V, foi integrada no Império franco.
- Entre os séculos IX e XVII, manteve-se sob domínio germânico. Em 842, dois netos de Carlos Magno tinham-na escolhido para firmar uma aliança militar, que resultou no primeiro documento escrito em francês e alemão, designado "Juramento de Estrasburgo". Essa confluência das duas línguas fixou, por perto de mil e quinhentos anos, o destino da metrópole.
- Em 1520s, aderiu à Reforma de Lutero e de Calvino, acolhendo uma universidade de cunho protestante.
- Em 1681, foi conquistada por França, retomando a confissão católica. Para impressionar os derrotados, Luís XIV encomendou a Jacques François Blondel obras monumentais, que incluíram o Palácio dos Príncipes de Rohan, pontes cobertas e uma nova cidadela burguesa no lado virado para a Alemanha.
Entrada monumental do palácio inaugurado, em 1742, pelo Cardeal Armand-Gaston de Rohan-Soubise, príncipe-bispo de Estrasburgo |
Visão geral do Palácio Rohan que, desde o séc. XIX, alberga os 3 museus: Arqueológico, de Artes Decorativas e de Belas Artes |
Fachada fluvial do majestoso edifício barroco setecentista, próximo da catedral, cujo pináculo se avista atrás. |
- Em 1871, integrou o I Reich e, a mando de Bismark, voltou a ser embelezada para vincar a supremacia cultural da recém-constituída Alemanha.
- No final da I Guerra Mundial, com a derrota alemã, tornou-se domínio galês.
- Em Junho de 1940, as tropas de Hitler anexaram a cidade-troféu, elevando-a a capital da Alsácia-Lorena. Protagonizou a campanha conhecida por "Malgré nous" para aludir aos recrutamentos forçados da população masculina, a partir de 1942.
- A 23 de Novembro de 1944, parcialmente devastada pelos bombardeamentos da aviação aliada, as forças anglo-americanas libertaram-na do jugo nazi.
- No final da II Guerra, voltou a ter hasteada a bandeira tricolor, embora constituindo o lugar, por excelência, da reconciliação franco-germânica. Com esse fito, em 1946, converteu-se na sede do Conselho da Europa, que respondia ao anseio verbalizado por Churchill para a criação dos Estados Unidos da Europa. Antevia, nesta união política, o melhor garante da paz, fundada num modus operandi cooperativo entre os povos europeus. Antecipou-se em mais de uma década à UE, para oferecer a um número vasto de países - 47 - um espaço de diálogo e defesa dos três pilares do bom convívio internacional: democracia, direitos humanos e primado da lei/Estado de direito.
Edifício do arquitecto Henry Bernard, foi inaugurado em 1977. Está decorado com obras de arte dos países-membros, sendo a portuguesa um um painel de azulejos |
- Mais tarde, Estrasburgo recebeu ainda o Parlamento Europeu e o Tribunal dos Direitos Humanos.
Ao assumir o cariz transnacional, que melhor se adequa à sua condição de ponto de convergência de culturas e poderes, Estrasburgo pôde, finalmente, prosperar em paz. A sua história espelha o melhor e o pior da Europa, numa atractividade que pagou avultadamente pelo sangue derramado por tantas gerações. Carrega, no fundo, os mesmos séculos de belicismo que assolaram a Europa, apenas apaziguados há 70 anos pelo novo estatuto de europeísmo.
As cicatrizes herdadas dessoutra concepção agressiva e dramaticamente próxima no tempo, acabam por prestar homenagem às perdas incalculáveis em vidas humanas e materiais, fruto da cedência à mais primária tentação do poder: a avidez da posse a qualquer preço, descambando facilmente em guerra. Dá que pensar a longevidade longuíssima de uma mentalidade tão nefasta. Por outro lado, indicia a eventual fragilidade deste novo pensar pluralista, que merece e precisa de vigilância, se quisermos evitar o reacender do espírito fracturante e nacionalista de outrora.
Como costumava afirmar o catedrático de História Jorge Borges de Macedo (BM): na riqueza da Europa reside também o ponto mais vulnerável - a diversidade, inscrita na sua matriz judaico-cristã. Testemunhei a acutilância da observação do Prof. BM em viagem recente a Estrasburgo, que reúne a excelente planificação alemã com o glamour e bom gosto franceses. Tudo lindo mas um pouco frágil, a evocar igualmente o aforismo de Oscar Wilde sobre a beleza: Dura apenas 5 minutos...
Concluindo com uma nota de esperança: foram (e costumam ser) evidentes os méritos do diálogo e da troca de experiências entre povos, a constituir o ponto alto das constantes reuniões multinacionais realizadas na cidade da Europa. Além de contribuir para a aproximação de gentes de latitudes e hábitos distintos, lança pontes inimagináveis e viabiliza complementaridades que o tempo, depois, ajuda a sedimentar. O tempo - esse grande mestre - joga sempre a favor de quem está bem-intencionado (uma convicção pessoal).
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
Deste vez, Maria Zarco, senti o seu texto como se fosse um daqueles livritos de 4 páginas que se encontram nos hall dos hotéis. Tenho pena, porque Vexa é capaz de muito melhor.
ResponderEliminareo
MZ, gostei de a ler, como sempre.
ResponderEliminarfq