Reviravoltas de regime, modas e revoluções deixaram marca na Catedral de Estrasburgo – ex-libris da capital da Alsácia-Lorena. Situada num enclave especialmente rico e erudito da Europa ocidental, cidade e templo apanharam-se no epicentro da rivalidade franco-alemã, em zona de fronteira demasiado elástica, reivindicada à espada por germânicos e franceses.
O exemplo mais caricato do choque de poder com ecos na Catedral de Estrasburgo ocorreu durante a Revolução Francesa. Naqueles anos de terror e mortandade sem freios, os republicanos gritavam por «igualdade, liberdade e fraternidade», enquanto se afanavam em usar a guilhotina, massificando o homicídio. Especializados em destruir, propunham-se fazer tábua rasa do património histórico e artístico de França, derrubando estátuas, rasgando telas, queimando palácios e igrejas, ou reduzindo-os a funções menores, humilhantes.
Demasiado visível e imponente no planalto fronteiriço, a Catedral alsaciana transformou-se em alvo a abater. Consideravam-na o expoente da sobranceria e uma afronta ao igualitarismo, com aquela torre octogonal muito esguia – a mais alta do mundo, até meados do séc. XIX.
O exemplo mais caricato do choque de poder com ecos na Catedral de Estrasburgo ocorreu durante a Revolução Francesa. Naqueles anos de terror e mortandade sem freios, os republicanos gritavam por «igualdade, liberdade e fraternidade», enquanto se afanavam em usar a guilhotina, massificando o homicídio. Especializados em destruir, propunham-se fazer tábua rasa do património histórico e artístico de França, derrubando estátuas, rasgando telas, queimando palácios e igrejas, ou reduzindo-os a funções menores, humilhantes.
Demasiado visível e imponente no planalto fronteiriço, a Catedral alsaciana transformou-se em alvo a abater. Consideravam-na o expoente da sobranceria e uma afronta ao igualitarismo, com aquela torre octogonal muito esguia – a mais alta do mundo, até meados do séc. XIX.
A parte superior da catedral é visível a kilómetros de distância |
Ao saber que o templo encabeçava a lista negra, o hábil mestre serralheiro Stultzer conseguiu convencer a turbamulta de que seria mais útil aproveitar a altura da torre para mostrar aos estrangeiros os méritos da Revolução, uma vez que era avistada de território germânico. A proposta foi bem acolhida, tendo ficado decidido enfiar no campanário um gigantesco barrete frígio, em cor púrpura, a replicar o dos revolucionários.
Medalha da revolucionária Marianne com o gorro frígio |
Durante nove anos, a ridícula cobertura manteve-se em posto, entrando de imediato para o anedotário dos locais, que o cognominaram em língua ininteligível para os republicanos: «Kaffeewärmer» (abafador de cafeteira/bule). Sabendo-lhes a pouco, em 1793, transformaram-na em «templo da deusa da razão». Ainda saquearam inúmeras imagens e fundiram os metais para fabricar canhões, que depois serviram às tropas napoleónicas. Só em 1801 voltou ao culto católico, recomeçando o restauro, em 1813, até cair em mãos alemãs, a mando de Bismarck – 1870.
Os mistérios que rondam a catedral, estendem-se à inexistência de uma segunda torre; à coqueluche tecnológica instalada logo na primeira construção gótica – o gigantesco relógio astronómico; à riqueza acumulada nos cofres da pequena e poderosa Capela de Nossa Senhora durante o primeiro quartel do séc. XV; à longevidade invulgar dos vitrais da rosácea na fachada ocidental – jóia do arquitecto mais antigo de Estrasburgo que apaixonou Goethe e Claudel – Erwin (séc. XIII). Nem um toque isotérico lhe falta, por causa de um misterioso raio verde, que aponta à uma imagem do Crucificado num dos púlpitos, duas vezes ao ano, nos equinócios de Março e de Setembro, pouco depois do meio-dia. A pontualidade do feixe verde surpreende, percebendo-se que emana do pé da figura de Judá pintada num vitral. Só não é certo se o efeito era intencional ou feliz coincidência.
Os mistérios que rondam a catedral, estendem-se à inexistência de uma segunda torre; à coqueluche tecnológica instalada logo na primeira construção gótica – o gigantesco relógio astronómico; à riqueza acumulada nos cofres da pequena e poderosa Capela de Nossa Senhora durante o primeiro quartel do séc. XV; à longevidade invulgar dos vitrais da rosácea na fachada ocidental – jóia do arquitecto mais antigo de Estrasburgo que apaixonou Goethe e Claudel – Erwin (séc. XIII). Nem um toque isotérico lhe falta, por causa de um misterioso raio verde, que aponta à uma imagem do Crucificado num dos púlpitos, duas vezes ao ano, nos equinócios de Março e de Setembro, pouco depois do meio-dia. A pontualidade do feixe verde surpreende, percebendo-se que emana do pé da figura de Judá pintada num vitral. Só não é certo se o efeito era intencional ou feliz coincidência.
O feixe dos equinócios da Primavera e do Outono |
O Cristo iluminado pelo reflexo verde |
Além do divertido raio verde, há outras notas de humor como os cães esculpidos em nichos estratégicos ou monstros exóticos em poses desconcertantes, que não chegam a assustar.
O sentido cívico dos estrasburgueses perpassa na escolha das figuras homenageadas nas estátuas gigantescas, que não privilegiou reis nem conquistadores, mas os maiores obreiros da Catedral. Excepção para o libertador de Estrasburgo – Rodolfo de Habsburgo (1218-1291) –, que lhe concedeu o estatuto de «Cidade Livre». O grande arquitecto Erwin até mereceu ter a sepultura num patamar intermédio da torre, para espanto de Goethe, que o elegeu como seu herói medievo.
O sentido cívico dos estrasburgueses perpassa na escolha das figuras homenageadas nas estátuas gigantescas, que não privilegiou reis nem conquistadores, mas os maiores obreiros da Catedral. Excepção para o libertador de Estrasburgo – Rodolfo de Habsburgo (1218-1291) –, que lhe concedeu o estatuto de «Cidade Livre». O grande arquitecto Erwin até mereceu ter a sepultura num patamar intermédio da torre, para espanto de Goethe, que o elegeu como seu herói medievo.
Das poucas rosáceas originais que ainda se preservam, em França. |
Num gesto de precocidade democrática, desde o séc. XIII que a administração da catedral passou a ficar confiada a um leigo, incumbido de prestar contas, regularmente, ao conselho dos cidadãos. Era recrutado com critérios de alguma meritocracia, pelos dotes artísticos e aptidões na gestão e na contabilidade, conforme reza nos documentos de época. Curiosamente, enquanto na catedral mandava um leigo, a autoridade máxima do município era exercida pelo Bispo.
Se a sofisticação cultural e tecnológica da cidade impregnou a Catedral até ao âmago, como o demonstra o extraordinário relógio astronómico, também os preconceitos e segregações ressoaram templo adentro. Descontando o vandalismo dos exércitos conquistadores que não poupavam a Catedral, é lamentável a tradição anti-semita, que recorria a um dos 16 sinos – em geral, o que também tocava às 10h da manhã – para avisar a comunidade judaica da hora de abandonar a cidade, mal o sol descia. A cada poente, o repique metálico soava por más razões, que se prolongaram por longos séculos, até ao último quartel do séc. XVIII. Também uma imagem feminina representativa da Sinagoga, aparece de olhos vendados e posição curva, espelhando como se encarava o judaísmo.
Antes de concluir, uma referência ao enigma da torre única: quando a catedral gótica começou a ser erigida sobre um antigo templo românico (início séc.XIII), inspirou-se na Notre-Dame de Paris, absorvendo o novo estilo pontiagudo, de arcos quebrados, fachadas gigantescas com grandes rosáceas, frestas avantajadas para entrar a luz, abóbadas, colunatas, naves. Os trabalhos de aperfeiçoamento estenderam-se por três séculos, acompanhando as últimas modas, a ponto de ficar conhecida por «laboratório artístico» do Ocidente. Nesses primórdios, teve duas torres de tamanho médio que, por motivos de segurança, foram absorvidas por um módulo central a preencher o intervalo entre as duas. A meio do séc. XIV, houve a intenção de abrilhantar a fachada demasiado quadrangular, dotando-a de novas torres descomunais. A encomenda dada ao alemão Ulrich d’Ensingen resumia-se a «transparence et jusqu’au sommet». Numa acrobacia arquitectónica e de engenharia, o mestre edificou a altíssima torre octogonal, depois terminada por Jean Hültz, em 1439. Entretanto, veio a Reforma, a conquista de Luís XIV, a Revolução, o I Reich e uma segunda torre tornou-se inviável. Até por este handicap, a Catedral manteve-se fiel a coleccionar singularidades.
Antes de concluir, uma referência ao enigma da torre única: quando a catedral gótica começou a ser erigida sobre um antigo templo românico (início séc.XIII), inspirou-se na Notre-Dame de Paris, absorvendo o novo estilo pontiagudo, de arcos quebrados, fachadas gigantescas com grandes rosáceas, frestas avantajadas para entrar a luz, abóbadas, colunatas, naves. Os trabalhos de aperfeiçoamento estenderam-se por três séculos, acompanhando as últimas modas, a ponto de ficar conhecida por «laboratório artístico» do Ocidente. Nesses primórdios, teve duas torres de tamanho médio que, por motivos de segurança, foram absorvidas por um módulo central a preencher o intervalo entre as duas. A meio do séc. XIV, houve a intenção de abrilhantar a fachada demasiado quadrangular, dotando-a de novas torres descomunais. A encomenda dada ao alemão Ulrich d’Ensingen resumia-se a «transparence et jusqu’au sommet». Numa acrobacia arquitectónica e de engenharia, o mestre edificou a altíssima torre octogonal, depois terminada por Jean Hültz, em 1439. Entretanto, veio a Reforma, a conquista de Luís XIV, a Revolução, o I Reich e uma segunda torre tornou-se inviável. Até por este handicap, a Catedral manteve-se fiel a coleccionar singularidades.
O maior desafio e segredo do sucesso da torre residiu na distribuição do peso colossal |
Quando as armas foram depostas e a bandeira suástica banida, Estrasburgo e a sua catedral respiraram, finalmente, em paz. Num gesto generoso e pleno de simbolismo, o Conselho da Europa fez questão de contribuir para o restauro do templo, oferecendo-lhe (1956) o vitral de Nossa Senhora, incrustado na fachada oriental. Um carisma especial, a Catedral ter conseguido acumular sete séculos de presentes… em pedra rendilhada, vidrilhos coloridos, pinturas murais, tapeçarias e peças decorativas em metais nobres.
«Vierge en majesté», de Max Ingrand, rodeada dos Apóstolos no mural a nascente |
Votos de Santa Páscoa a todos, com um presente muito europeu, inclusive na sua fragilidade!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
Pronto, vá lá... Tinha que ser...
ResponderEliminarMaria Zarco mostra, neste post, o que é capaz de fazer. O muito bom, o excelente.
Educativo, acima de tudo nos pormenores.
Cumprimenta, com admiração,
eo
Muito obrigada pela generosidade do comentário. Votos de Santa Páscoa, MZ
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