ARQUITECTURA COM IDENTIDADE TEM CASE-STUDIES EM ISTAMBUL
O destino mítico do «Expresso do Oriente» coincide com o expoente do ponto de encontro das civilizações oriental e ocidental, no estreito vital do Bósforo – Istambul. Elo de ligação da Ásia à Europa, é a única cidade situada entre dois continentes.
Percebe-se que seja a quarta maior urbe do mundo, ex-capital do Império Romano do Oriente e depois do Otomano até à sua extinção em 1923, cedendo o lugar a Ancara. Era também a cidade de Calouste Gulbenkian, que ali nasceu (1869) e viveu até aos 15; cursou o liceu e a universidade, respectivamente, em França e Inglaterra; voltou a Istambul; e aos 27 abandonou a Turquia com a família, para escapar à perseguição movida contra a comunidade arménia (1896).
A sequência de nomes da grande metrópole evoca os principais marcos de uma história agitada, alvo-mor das conquistas. Começou Bizâncio (até 330); evoluiu para Constantinopla ao ser elevada a capital da cristandade no Oriente, sob o Imperador Constantino; e submeteu-se a sultanato do Império Otomano (1453) com o nome que ainda mantém.
Porém, a voragem do tempo não apagou os vestígios da cristianização de Bizâncio, que subsistem com pompa, sendo o caso mais emblemático a Basílica de Santa Sofia ou «Hagia Sophia» («Sabedoria» em grego).
A versão que persiste é a terceira (532-537), mandada edificar pelo Imperador Justiniano, que a adjudicou aos melhores cientistas da época: o físico Isidoro de Mileto e o matemático Anthemius de Tralles. Tinha bem a noção de que as construções arrojadas e portentosas exigiam engenharia de primeira qualidade, o que pressupunha cálculos matemáticos rigorosos, além de hordas de operários especializados. O soberano reuniu os melhores materiais do Império para erigir uma jóia arquitectónica bizantina, em meia década: com colunas helénicas do Templo de Artemis em Éfeso, pedra pórfido do Egito, mármore verde da Tessália, pedra negra do Bósforo e pedra amarela da Síria.
Implantada em zona visível da metrópole, que tem uma fisionomia incrivelmente semelhante a Lisboa (minaretes à parte), a Hagia Sophia tornou-se sede do patriarcado ortodoxo de Constantinopla – a Segunda Roma. Era também o local escolhido para as cerimónias imperiais e as coroações.
Um reservatório de água artístico, percorrido por estátuas de medusas e colunatas de pedra. |
Logo após a conquista da cidade pelo temível Sultão Mehmet II, em 1453, Santa Sofia foi convertida em mesquita, submetida a obras e acrescentos para promover a tão desejada metamorfose. Os mosaicos com ícones foram revestidos de camadas espessas de estuque pintado de arabescos árabes e padrões simétricos florais, característicos da arte sacra maometana. Curiosamente, pela sua beleza incontornável, tornou-se na referência arquitectónica dos templos maometanos de Istambul.
Vestígios do período em que esteve adaptada a mesquita, cumprindo pobremente uma função avessa à sua raiz. |
Apesar do empenho otomano para imprimir um cunho muçulmano à catedral cristã, os problemas não pararam e o novo selo nunca se lhe afeiçoou. Nada surtiu efeito. Nem os grandes medalhões de caracteres árabes colocados em lugar nobre, no transepto, nem as obras de restauro (1847-49) dos irmãos arquitectos suíço-italianos, com currículo feito em S.Petersburgo – Gaspare e Giuseppe Fossati, que descobriram mosaicos tapados há séculos. Aquelas paredes esguias, ordenadas por três naves desafogadas para formar um rectângulo pontuado por arcos góticos, colunas gigantescas, vidraças transparentes e uma luminosidade que convida a um certo recolhimento, nunca disfarçaram a sua identidade primordial. A arquitectura bizantina – que entusiasmara os califas para a transformar em arte otomana – nunca mudou de natureza, no essencial.
Volvidos cerca de cinco séculos de intervenções infrutíferas e caras, Istambul rendeu-se à traça original e aceitou acordar a Bela, que ficara Adormecida desde meados do séc.XV. Assim, em 1934-35, Hagia Sophia renasceu como museu-Basílica ortodoxa para revelar os tempos áureos de Constantinopla. Um monumento de luxo, que sobressai na lindíssima cidade banhada pelo Bósforo.
Quando se cruza o limiar daqueles portais invulgarmente altos, mais do que a beleza, impressiona o eco da História milenar. Um passado ali quase palpável. Quase audível, como se ressentíssemos vibrar a passada fogosa das montadas dos cavaleiros cristãos, ao nosso lado. Uma experiência única!
Quantas expressões artísticas convoca a arquitectura, harmonizando-as num mesmo espaço?... Grandes artistas, os arquitectos, quando levam tão longe a sua obra!
Obras de recuperação dos mosaicos escondidos permitem vislumbrar a beleza lendária referida pelos cronistas da primeira era cristã. |
Além desta proeza arquitectónica, Istambul ainda soma um segundo templo que replica à letra, em ponto mais pequeno, o percurso e a força indomável de Hagia Sophia. Menos conhecida, até por estar desviada da zona dos monumentos antigos, a Igreja de São Salvador em Chora ecoa de modo evidente o seu cariz cristão, porque os mosaicos bizantinos preenchem quase todo o espaço, fazendo ressaltar uma identidade gravada, até ao âmago, naquelas pedras.
Painel da esq.- Presépio invulgar para o padrão ocidental. |
Quantas expressões artísticas convoca a arquitectura, harmonizando-as num mesmo espaço?... Grandes artistas, os arquitectos, quando levam tão longe a sua obra!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
MZ, felicito-a.
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Que simpatia. Muito obrigada, MZ
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